domingo, 27 de janeiro de 2008

CLARINDO, O REI MURCHO.


Meses atrás eu estava andando pelo Terreiro de Jesus, bateu um vento forte, estúpido, e jogou ao chão um sujeito franzino do qual eu me compadeci e ajudei a levantar: era o Clarindo Silva. Ele, em pé, limpando com as mãos as calças brancas, agradeceu-me e seguiu seu caminho. Segui meu rumo e, lá na frente, voltei os olhos para trás, vi aquela figura andando ainda meio desequilibrada e pensei: “Meu Deus, como ele é magro.”

Pois que a vida me deu uma rasteira, me pegou de supetão assim como de supetão surgiu a notícia de que não haveria mais o concurso para Rei Momo no carnaval deste ano, transformando-se dessa maneira a figura do dono da cidade nos dias de folia numa pessoa escolhida por um grupo dirigente qualquer, uma celebridade, alguém conhecido dos baianos e por eles muito querido, pois a figura gorda já não tinha a mesma expressão e representatividade de tempos atrás. Não contente com a notícia tão drástica, em seguida o anúncio de Clarindo Silva, o Rei Momo do carnaval de 2008.

Fiquei estupefato. Congelado e pensativo. Meu mundo caiu. Fiquei sem chão.

Como assim Clarindo Silva o Rei Momo? De primeira, confesso, tentei esconder de mim mesmo a constatação de que o Clarindo a que o anúncio se referia era o mesmo Clarindo que fora derrubado pelo vento (que lembrando bem nem foi vento tão forte assim). Mas era inevitável, na Bahia só existe um Clarindo Silva, e agora ele me aparecia como o Rei Momo.

Não tenho talento para me conformar fácil com coisas estabelecidas, regras, leis. Embora tradição seja algo que sugere mesmo a não-mudança de um aspecto que deve permanecer intocado, o mais importante neste aqui em questão é o fato de que, antes de tudo, o fator lúdico que havia em volta da figura gorda do Rei Momo é parte integrante da cultura carnavalesca brasileira, representa sim o sujeito sem rédeas, bonachão, glutão, assim como em essência o carnaval representa: a desmedida, o devaneio, o delírio de parar a vida, a rotina, para dançar e festejar coisa nenhuma por sete dias.

Na minha mente, até mesmo o nome,“Rei Momo”, já leva inevitavelmente a se pensar numa figura gorda. Gorda e alegre. E agora, assim, sem vaselina nem manteiga, sou obrigado a engolir – e antes me engasgar com osso atravessado na garganta – a imagem raquítica de Clarindo Silva com coroa e chave da cidade em mãos. Ou seja, em questão de segundos, não sei que força transcendental, me força a destruir, interromper abruptamente, a figura obesa do rei da folia.

Clarindo Silva de frente parece estar de lado, e de lado parece que já foi. E muito me pareceu provocação colocar como o primeiro Rei Momo, digamos, diferenciado o esquelético Clarindo Silva. É pra qualquer gordo morrer de desgosto ou se desgastar em convulsivas bulimias. Que colocassem até um sujeito esbelto, ou meio barrigudinho, cairia menos pior. Mas Clarindo é demais, magro demais.

Depois da notícia, fiquei quase três noites sem dormir, vendo aos poucos a fantasia se desvanecendo, a sobra de algo verdadeiramente lúdico se perder. Fiquei mesmo preso a uma expectativa, a de que as pessoas – magras, gordas, barrigudas, esbeltas – se manifestariam, iriam às ruas, com faixas e gritos de rebeldia e reinvidicação. Nada houve. Apesar disso, fora de meu costume, não me desesperei. Aguardei silencioso o primeiro grito ecoar. Pensei que decerto as pessoas estivessem na mesma situação em que eu me encontrava, ainda assustadas, tentando absorver a nova realidade imposta.

E não demorou muito, dei glória aos céus, começaram as primeiras reclamações, entradas de processo no Ministério Público, manifestações nas ruas e até o aparecimento de um grupo do qual eu jamais havia ouvido falar: Associação de Obesos da Bahia, que zela pelos direitos dos gordos na sociedade.

Cheguei a participar de algumas dessas mobilizações, conversei com alguns obesos e obesas, ouvi seus anseios e revoltas diante deste despropósito. Passei a questionar num desses bate-papos para onde teria ido o dinheiro dos custos e premiação para a eleição do Rei Momo, pois até então haveria sim o concurso nos moldes tradicionais. Uma mulher palpitou: “Virou cachê pra o Clarindo.” Outras falavam: “A federação de blocos certamente surrupiou.” Se a voz do povo é a voz de Deus...

Saibam:
“O Rei Momo surgiu no Carnaval carioca em 1933. O jornal A Noite deu-lhe a forma plástica na figura de um rei de papelão. Depois de um animado desfile pela Av. Rio Branco, no Centro da Cidade, o boneco foi colocado no trono, de onde passou a presidir o Carnaval carioca. Mas o jornal não se contentou: queria um rei de carne e osso. O redator de turfe Moraes Cardoso, um homem muito gordo, foi eleito e vestido como um monarca. Até 1967, a eleição do Rei Momo se dava por indicação de entidades carnavalescas e jornalistas. Naquele ano, o concurso foi oficializado por lei estadual e, em 1988, por lei municipal.”

Embora a escolha do primeiro Rei Momo tenha sido fruto muito mais do acaso do que de uma história mitológica, essa espontaneidade, que nitidamente veio a calhar na figura de um homem gordo, é sem dúvida o mais fascinante nisso tudo, e sem quaisquer pretensões de tornar-se mito tornou-se. Tradição previamente estabelecida não é tradição, é investimento financeiro em cultura popular. A desculpa da maldita federação para explicar a bruta modificação da figura outrora gorda, além de querer focar numa pessoa muito querida por todos, era de que “gordo dá muito trabalho”, “por causa do cansaço pode acabar passando mal”, “toma espaço demais”. Cheios de argumentações lógicas, mas todas sem fundamento digno.

E, ligeiro parêntese, sinceramente, caos por caos, façamos um trato: se o problema é a falta de expressão e representatividade do gordo como Rei Momo do carnaval, vai aí uma dica para os grandes empreendedores carnavalescos: sugiro que exterminem os blocos afro do carnaval, que só passam na avenida já quando não há mais pessoas nem mídia no circuito da folia e representam ali, de forma bastante apagada, uma parcela da população que, apesar do grande contingente, quase não brilha na grande festa: o povo preto e pobre da cidade do São Salvador.

Constatação digna de um paradoxo, sim, está faltando espaço pra gordo no mundo.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

E se não fosse a pirataria...


Ontem escutei o mais recente disco do Chico Buarque, Carioca. Já estava achando-o enfadonho quando, por um impulso, desses que não sabemos bem porque surgem, me dei conta da importância sócio-cultural da divulgação artística feita através da venda ilegal de produtos não-originais: a pirataria. Inevitavelmente, escutando Chico, me lembrei daquela irrelevante Campanha em que o consagrado compositor participou, a tal Campanha contra a Pirataria. Como se já não bastasse, hoje, a quase completa insignificância da produção atual deste artista, ele ainda assina um compromisso como este, uma atitude autoritária e um total desleixo com a real propagação das manifestações artísticas. Não escutei o disco até o fim. Creio não ter perdido muita coisa.

É óbvio que não estou aqui negando a raiz maior da prática de venda ilegal de produtos, que é decerto um crime, absolutamente contrariando leis e direitos autorais. Apenas digo que minha defesa à pirataria se dá pela via prática com que as coisas acontecem, ou seja, não houvesse a pirataria, concretamente falando, muitas pessoas não teriam acesso a filmes e músicas que, em variados casos, mudaram a vida dessas pessoas, fazendo com que a arte cumpra objetivamente seu papel. Claro que se paga um preço por isso, mas considero impagável e fundamental a oportunidade de as pessoas terem acesso a qualquer tipo de manifestação artística.

A verdade é que são poucos os do meio artístico que berram contra os abusivos preços de filmes e discos originais à venda. Pelo contrário, há mesmo uma legitimação por parte destes, cheios de argumento aparentemente coerente, mas, que na prática, não vão fundo na questão. Um exemplo bem improcedente é o da banda Harmonia do Samba, que começou a carreira tocando nos chamados guetos e teve sua ascensão popular graças à divulgação de suas músicas através de cópias não registradas dos shows. Depois disso a banda do Xandy chegou às paradas de sucesso sem precisar da tão comum e ilegal mãozinha do jabá. A banda assinou contrato com Gravadora e temos que aturar hoje o vocalista da banda, num ou noutro programa de auditório, mal dizer aquilo que o fez chegar aonde chegou.

Outro argumento muito utilizado para se combater a pirataria é o fato de que se não compramos produtos originais isso faz com que milhares de pessoas que trabalham direta ou indiretamente com a produção destes sejam desempregadas. Mas aí está um caso a parte. Sejamos sinceros e sensatos: há uma função social, quase às escuras, que vem sendo cumprida de forma espontânea através da prática ilegal em evidência. Um caso muito simples: O disco Construção, de Chico Buarque, lançado em 1971, é considerado um clássico do compositor, pelos belíssimos arranjos, as letras bem trabalhadas e até mesmo a circunstância histórica em que o mesmo surge. Pois bem, este disco, remasterizado no formato CD, há oito anos atrás - quando ainda não havia explodido por completo o mercado ilegal - estava sendo vendido numa grande loja de departamento ao amargo e valoroso preço de R$ 38,00. Cinco anos depois, o mesmo disco - aí sim o mercado pirata já mostrava todas as suas garras -, na mesma loja, era vendido, aos montes, pelo singelo preço de R$ 10,00. Preço este nitidamente viável. Em síntese, por agora, por causa da enorme procura pela produção de falsificados, as lojas tentaram achar um caminho curto para manter de pé suas vendas, o que deixou evidente que independente de pirataria é possível sim vender discos a preços verdadeiramente populares. Que é possível sim manter empregados os funcionários das Gravadoras e todos aqueles que ganham indiretamente com a venda legal de produções artísticas. O que a pirataria tem feito – além de divulgar e acrescentar mais arte à vida das pessoas, diretamente vendendo seus produtos e indiretamente forçando a venda de produtos originais a preços acessíveis – é diminuir o exorbitante lucro de uns e outros.

Tem sido de grande relevância as transformações porque passa o mercado pirata, cada vez mais se profissionalizando, criando um código paralelo de relações empresa-consumidor. Certa vez em que eu estava passando por ambulantes no centro da cidade, fiquei maravilhado, primeiro, com o marketing espontâneo na venda destes produtos: “Tropa de Elite, filme de Olavo, de Paraíso Tropical”, “Ó pá aqui ó, Ó paí ó”, “Churek 3, lançamento” etc etc. E o que me impressionou também foi a diversidade de filmes à venda, pois vi, quase sem crer, ambulantes vendendo DVDS por seguimento, uns que vendiam apenas gênero gospel, outros voltados para o público em geral, com filmes que ainda nem haviam chegado nos cinemas, ambulantes que eram especializados, à luz do dia, em filmes pornô e seguimentos só para MPB, samba e filmes clássicos e Cult, todos esses a R$ 5,00 cada. Percebi ali o crescimento real de uma indústria inteligente. Além de tudo, responsável, pois cada DVD vendido leva um carimbo ou etiqueta, na contracapa, com informações do vendedor: número de telefone e endereço para novas aquisições e troca do produto, caso ocorra algum problema.

Inegável que tudo isso acontece às claras com o consentimento - arrisco dizer – legítimo do Estado. Porque é simples pensar sobre isso: se não fosse a pirataria esse contingente todo que hoje vive do comércio ilegal estaria fazendo o que? Certamente saqueando mercados, roubando bancos, outros estariam criando grupos de guerrilha, sonhando revoluções, e muitos jovens - mais do que os que já estão – entrariam para o tráfico de drogas. A pirataria, pasmem, interessa ao Estado porque mantém a ordem. Claro que declaradamente nenhuma autoridade vai dizer isso, seria politicamente incorreto. O que vão fazer aí é uma ou outra apreensão de produtos falsificados, mas nada muito relevante e efetivo. Tanto que a falida Campanha não partiu do Estado, partiu das Gravadoras. E embora, com o mercado informal, o Estado não ganhe nada, o que vale aqui é, como já disse, manter a ordem e assegurar sem incômodos as brechas e regalias que o mesmo fornece aos que dele se deleitam.

Tomo a pretensiosa atitude de dizer que o “x” da questão não está no ambulante do centro da cidade, nem na indústria paralela que cresce a cada dia. Se se deve combater algo é preciso repensar sobre os domésticos avanços digitais. A grande pirataria escancaradamente legitimada são os programas de cópia de arquivos virtuais: emule & cia. Porque, vejam bem, basta que apenas eu hoje compre um disco, um simples exemplar do disco de Chico Buarque, e o grave em meu computador. Está feito. Um internauta na Tailândia terá acesso a ele e se acaso gostar muito e achar que aquilo pode lhe garantir algum dinheiro ele vai fazer inúmeras cópias e vendê-las. Mais do que claro: a pirataria - a do ambulante, a da indústria criminosa paralela - é apenas conseqüência de uma situação ainda sem questionamento concreto e de solução quase impraticável. E em meio a tanto caos, o mais importante e constitucional está sendo feito: o acesso incondicional às artes para o povo.