quarta-feira, 17 de setembro de 2008

A FUNÇÃO SOCIAL DA HOMOSSEXUALIDADE.


Reconheço sim na minha cara robusta um tanto de pessimismo aparentemente assustador. Na minha cara, porém, não está meu coração, sem modéstia, singelo e cheio de esperança. E me dei conta de que devo desde já transparecer na cara o coração quando passou por minha vida, dia desses, não um rio, mas um arco-íris. Vi de perto, comovido, em pleno centro da cidade, a Parada do Orgulho Gay. A comoção, fique claro, não foi a de quem sentiu-se despertado por um súbito impulso homossexual e muito menos por achar bonito o beijo entre iguais em gênero – até porque considero o beijo mais obsceno do que a relação sexual, seja entre heterossexuais, seja entre homossexuais.

Ah, a comoção, o deslumbramento, tudo mais nítido e cheio de vida despertados em mim, levando a tímidas lágrimas, porque vi, nas entrelinhas da festa, um pedaço significativo das positivas mudanças porque o mundo passa. A ascensão da liberdade homossexual, a meu ver, é o contraponto moral mais eficiente nos dias atuais. É nesse simples ato livre, que ainda tanto afeta doentios heterossexuais, que está uma das chaves da grande mudança interior dos seres humanos. Digo isso porque a partir da homossexualidade aspectos sociais, econômicos, filosóficos e morais já vêm passando e hão de passar cada vez mais por alterações que dão à vida das pessoas um novo caráter, fazendo do corpo mero artífice sexual, tomando como essência a alma, em seu mais amplo e integral conceito de humanidade.

Decerto é exagerado – embora para mim qualquer exagero é sempre esteticamente tocante – dizer que a homossexualidade vai salvar o mundo. Convenhamos que não salve por si só, mas o ponto fundamental da salvação está sim nos gays, lésbicas e afins. Tomo como exemplo a abrangente afetação moral que essas pessoas causam nos supostos normais, a diversidade e liberdade de escolha ou simplesmente a liberdade de ser o que é, já vem sendo exemplo para as novas gerações, garotinhos e garotinhas, ainda em tenra idade, não se reprimem em seus atos – nos meninos, atos mais delicados; nas meninas, robustos atos – e nem são tão reprimidos como em outras épocas outros meninos e meninas sofriam. A vantagem de ser o que é torna, sem dúvida, a convivência familiar mais transparente, o garotinho já não se sente culpado pelo gosto que tem tocar outro garotinho, a menina se sente à vontade a sentir mais além a pele da sua amiga, pois já não é mais o tempo das trágicas histórias do Nelson Rodrigues, a hipocrisia na vida familiar, a duras penas, é claro, vem sendo quebrada, gradativamente, graças à homossexualidade.

Outra contribuição, ainda dentro do contexto familiar, está na morte do homem machista, no nascimento da mulher agressiva. No cemitério da vida moral é onde os machistas se encontram hoje porque o aparecimento crescente e sem freios do homossexual permite ao homem experimentar sensações reprimidas por séculos infindáveis, permite que o homem chore, esperneie, olhe o mundo com mais doçura, influenciando, inegavelmente, os homens heterossexuais, influência esta que é de grande importância principalmente na vida amorosa e familiar, pois no lugar do macho vê-se, aos montes, homens delicados, donos-de-casa, mais amantes e menos agressivos com suas companheiras, buscando em si mesmos o prazer de saber dar prazer à mulher amada. A geração aos turbilhões de mulheres agressivas tem trazido contribuições também fundamentais, pois essa agressividade é o passo determinante na conquista da Razão por parte das mulheres, pois hoje, estas enxergam determinados aspectos na vida social com mais frieza, mais cautela, sem o comum desespero feminino, fazendo, assim, o equilíbrio essencial e que vem servindo de exemplo e influenciando as novíssimas e ilimitadas mulheres heterossexuais.

O aspecto sócio-econômico é o que já vem trazendo bons frutos, pois socialmente estabelecida a relação homossexual, este tipo de envolvimento é o freio que faltava à Humanidade na sua densidade demográfica, nesse crescimento populacional desequilibrado, uma vez que a geração de uma nova vida entre pares de gênero igual é biologicamente impossível, tornando possível, à medida em que o tempo passa e a homossexualidade torne-se absolutamente abrangente, uma qualidade de vida ideal, pois quanto menos pessoas melhor se pensa e se pratica as formas de distribuição social de recursos materiais. Mas é óbvio que para chegarmos ao lugar que Thomas Moore inventou (a difamada Utopia) é necessário muito mais do que já vem sendo feito, é preciso sim uma campanha maciça – e falo isso pensando em vias práticas de execução – a favor da legitimação e incentivo familiar e social à homossexualidade, na busca inovadora de influenciar seus filhos e filhas ao gosto homossexual, revolucionando costumes – dar boneca a meninos, dar bolas de gude a meninas – e quebrando as tendências ditas normais – perguntar ao menino quem é o namoradinho dele na escola etc. Essa campanha além de trazer, embora a longuíssimo prazo, os benefícios democráticos da distribuição material, imprime nas novas gerações atitudes mais dóceis nos homens, ações mais práticas e inteligentes nas mulheres.

Anexo à campanha que proponho, seria imprescindível partir do governo federal um incentivo, que pode acontecer desde já, aos homossexuais adultos, à adoção de crianças, matando dois coelhos numa só cajadada: menos crianças nos orfanatos (o que significa mais amor entre seres humanos) e naturalmente menos gente gerada no mundo (porque a partir desse incentivo, nenhum dos parceiros ou parceiras vai se submeter a fazer um filho fora da relação, uma vez que terá o direito, por lei, de adotar uma criança).

A separação sexo x amor está melhor configurada numa relação homossexual, nela as barreiras impostas na dura e repressora relação heterossexual não se fazem presentes, pois a liberdade, e porque não dizer, a libertinagem do corpo, do impulso sexual ultrapassa limites que vão aflorar numa visão mais voltada à essência humana, distanciando-se mais e mais da hipocrisia tão em voga entre heterossexuais quando dizem sentir prazer e desejo apenas entre si mesmos. O despudor corpóreo trazido pela homossexualidade e sua utilização prioritariamente para a satisfação sexual faz das sensações, fundamentais à renovação do espírito, uma eterna novidade. Essa separação, para muitos, drástica, é a mais simbólica e fundamental contribuição da ascensão homossexual, porque se identifica mais claramente nessa revolução moral o conteúdo humano, a demonstração explícita de se ver as pessoas como pessoas, amando-as como pessoas, como almas humanas em si, desprezando, ainda que implícito, classificações, dando ao gênero – antes protagonista – o mero papel de figurante nesse novo e especial contexto da Humanidade.

A mudança já teria dado passos muito mais largos se não fossem, sabe-se, as Instituições que insistem introduzir nas pessoas a repulsa a homossexuais, e essa repulsa propagada ora aparece de cara aberta nas igrejas, centros espiritualistas, mesas de bar e Forças Armadas, ora camufla-se nas Jurisdições e parlamentos políticos. Em resposta a estes ataques ainda constantes, a reação homossexual de maior relevância infelizmente é a de menor eficiência, e talvez a que mais prejudica o natural andamento da transformação em foco. Porque se fecha em guetos, criam grifes, bares, departamentos, revistas e até igrejas, a homossexualidade estagna-se como folclore, e pior do que isso, configura sobre si mesma perante a sociedade a insistente e prejudicial imagem de “diferente”, “extravagante”, “anormal”. O que seria uma defesa ganha a pólvora de fogo-amigo. Claro que deve se separar o joio do trigo, a formação de grupos em defesa dos homossexuais é fundamental, pois preza pela defesa, pela integridade de, antes de tudo, seres humanos. Nesse ponto sim é importante a classificação, embora não seja o suficiente para legitimar os chiliques verborrágicos e provocações piadísticas e pouco relevantes de Luis Mott quando diz que quase todo mundo na História foi gay, desde São Sebastião (que morreu flechado com um pau nas costas) até um Zumbi dos Palmares (talvez porque fora esquartejado e colocado à mostra com o próprio pênis na boca).

Ainda que intercalado a ações equivocadas e ligeiros vazios de conteúdo, vê-se na configuração do ser humano do século XXI o retorno do grande crescimento de nossas almas, numa analogia, aqui, lógica, ao período helenístico, onde a homossexualidade tinha função social efetiva, onde mestres e discípulos – homens – se envolviam, por inteiro, no aprendizado filosófico. A analogia cabe, mas sofre a diferença fundamental quando se percebe que é neste século onde estão se configurando homens e – agora sim – mulheres que são, antes, seres vivos, humanos, demasiado humanos, que pensam e podem, à medida que os passos se tornam largos, à medida que a repulsa seja banida, exercer ostensivamente sua plena e delirante liberdade, e porque não dizer, digo outra vez, sua plena e delirante libertinagem. 

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

ERRARAM DE JOÃO!


Quando meu médico recomendou-me pequenas caminhadas, hesitei um pouco por conta do ato de andar que é coisa que muito detesto, prefiro carro, se o tivesse, até pegar ônibus, ou quando me permito um luxo só, tomo um táxi. Há males, eu já disse, que vêm para o bem. E nesse caso falo nem tanto pelo benefício à minha saúde, mas, mais válido porque, numa dessas caminhadas minúsculas noturnas, pelas bandas do Campo Grande, vi, de perto, a humilhação de umas tantas pessoas enfileiradas à porta do Teatro Castro Alves, arreadas no chão, aguardando, para a manhã seguinte, adquirirem um mísero ingresso para o show de João Gilberto.


Um porém nisso tudo é que de nada serve dizer aqui que “tem gosto para tudo”, porque, neste caso, muito específico, não se trata de gosto. Se trata de qualquer outra coisa, menos de gosto. Sei bem que entre as tantas pessoas que solicitamente se permitiram tamanha humilhação são pouquíssimas as que perdem horas intermináveis escutando músicas na voz do João Gilberto, mínimas as que possuem pôster do João Gilberto na parede do quarto, ínfimas as que entendem porque João Gilberto é o ícone da Bossa Nova. Então, para que tanta humilhação? Talvez a psicanálise, a psicologia social, ou o materialismo histórico possam explicar, a seu modo, tal fenômeno. Arrisco que alguns tantos universitários universitários estavam ali para preencher o currículo com matéria extra-curricular: Show de João Gilberto.


Mas a mim não cabe explicar o que leva tanta gente a se esbofetear, acampar na porta do teatro, gastar valores abomináveis para apreciarem o que verdadeiramente não apreciam, contemplar o que não contemplam, ouvir o que mal podem escutar. Sei apenas que a grande sacada pertence ao próprio João Gilberto, fazendo-se de autista, inventando manias, criando casos, não comparecendo a compromissos, tornando-se por isso reverenciado por todos, sem nem saberem porque reverenciam.

Erraram de João. Entre as tantas personalidades que de forma direta ou indireta influenciaram ou foram moldando o que veio a se chamar de Bossa Nova, o verdadeiro e sempre renovado ícone deste gênero musical foi, sem dúvidas, João Donato. Não desmereço o talento e a importância do João Gilberto. Apenas contesto que seja ele o centro das atenções, o ícone, uma vez que o mesmo não criou nada, apenas encorpou de maneira mais condensada o que Roberto Menescal, Carlos Lira, Tom Jobim, Jonny Alf, Tamba Trio, entre outros já faziam a um modo jazzístico muito peculiar. E só encorpou porque no meio do caminho havia João Donato.


A batida do violão é fruto do samba que foi traduzido, na influência do jazz, por Carlos Lira; a letra descompromissada, alienada, amorosa e coloquial – que é uma revolução na literatura musical brasileira – começa também com Carlos Lira, e ganha maior consistência na poesia melódica do Vinícius de Moraes; o toque da bateria característico – na Tailândia se reconhece a batida de Bossa Nova – é fruto, pasmem, da involuntária criação musical de um baterista, no estúdio, gravando disco do João Gilberto; e mesmo o modo baixinho de se canta – isso sim uma invenção atribuída ao tal ícone – é fruto do incômodo de alguns vizinhos dos prédios cariocas exigindo silêncio nas delirantes madrugadas daqueles jovens, entre violões, que para não causarem maiores desentendimentos foram forçados a cantar baixinho.

Tudo isso antes do João Gilberto, tudo isso na influência significativa de João Donato, através de um instrumento nem um pouco familiar à Bossa Nova: um acordeom. Antes do piano, João Donato tocava acordeom, só que de maneira diferenciada, nem regional nem experimental tornando, a partir daí, o que era jazz numa nova linguagem, a mescla exata que veio dar em tudo o que Roberto Menescal, Carlos Lira, Tom Jobim, Jonny Alf, Tamba Trio e João Gilberto passaram a criar.

De forma espontânea, sem nem saber como, João Donato é quem dá o mote à Bossa Nova, é quem verdadeiramente abrasileira os músicos tão bem encaminhados no jazz, à base de Dick Farney, Cole Poter, Frank Sinatra e Chat Baker. É João Donato quem possui o tal suingue inconfundível, a síntese precisa do que veio a se tornar um gênero musical universal. E tudo sem grandes pretensões a ponto de o próprio João Donato só ter se dado conta de sua peculiaridade e importância muitos anos depois. Sem falar que ainda espontaneamente o próprio João Donato troca o acordeom pelo piano, apenas por considerar o primeiro um tanto incômodo de manusear.

João Gilberto declarou: “Eu faço samba.” Acredito. Quem faz Bossa Nova, quem inventa tudo isso que vem sofrendo influência e assédio até de quem não conhece Bossa Nova é João Donato. É João Donato quem vai ensinar a João Gilberto a batida perfeita, entre ovos fritos ao som de Chat Baker e conversas demoradas do meio-fio de Copacabana à casa de Bené Nunes. É João Donato quem inverte a lógica e se reinventa até hoje, fazendo dessa Bossa constantemente nova, incorporando-a a variados ritmos – atitude bem diferente de João Gilberto, que há séculos se repete, tocando as mesmas músicas, as mesmas batidas, causando em Carlos Lira o vômito de declarar: “João Gilberto parou no tempo.”


Anos atrás, João Donato esteve em Salvador fazendo um pequeno show no Centro Histórico, para uma platéia sem grandes celebridades, em pleno domingo, meio-dia. O ingresso? Uma lata de leite Ninho, tudo revertido para instituições de caridade. Com R$ 180,00 é possível comprar 25 latas de leite Ninho. Com R$ 180,00 é possível: pagar para suportar o atraso de quase duas horas do show de João Gilberto; contribuir para o seu adiposo cachê; e encher ainda mais o cofre do Banco Itaú, que foi quem trouxe João Gilberto de volta aos palcos de Nova York, São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. A simplicidade de um João Donato detonou a existência autista, mítica e mercantilista de um João Gilberto.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

OLÍVIA É 2.385% NEGRA.



2.385% é um valor percentual que jamais imaginei que pudesse existir. Nem faço idéia do que venha a ser 2.385%. Ultimamente levo sustos constantes, sofro pesadelos intermináveis, com números gigantes, cifrões agressivos, valores descabidos – embora a recomendação de meu médico seja a de não me permitir chateações nem emoções fortes. Mas, doutor, é mais forte que eu. E veio impresso estampado no jornal: 2.385%. A quem se refere esse número? Pasme quem ainda inocentemente se pasma: Olívia Santana (a “negona”, a que é “a cara da cidade”, a afro-descendente, a feminista, a filha de lavadeira etc etc). 2.385% é o valor percentual do crescimento, entre 2004 e 2008, de bens declarados pela vereadora ao TRE. Simples assim: em 2004, Olívia declarou R$ 5 mil; em 2008, vergonhosos R$ 125 mil. É o comunismo em processo evolutivo. Rosa Luxemburgo, retorcida na cova, grita de lá: “Isso é acúmulo de capital”.


Pois bem, haverá quem se indigne e me pergunte: “Por que ‘vergonhosos R$ 125 mil’? E a partir daí já sei, sou obrigado a sofrer o antigo discurso comunista de que os “vermelhos” defendem a distribuição de riqueza, não a distribuição de pobreza. Até aí concordo, é bem o meu ponto de vista, desde que efetivamente a riqueza gerada seja realmente distribuída. Mas considero esses R$ 125 mil vergonhosos sim porque em sua justificativa Olívia Santana diz ter conseguido economizar, fazer uma poupança de R$ 40 mil em quatro anos, diz ter conseguido um empréstimo grande, gigantesco, com duas pessoas amigas, fora uma parcela de R$ 20 mil junto ao Banco Real. São vergonhosos porque ao discurso dela não cabem 2.385%, no histórico dela não cabem as justificativas para crescer, de Atenas a Pequim, 2.385%.


Posso conceder crer que ela distribua, como comunista de carteirinha que é, esse valor entre os seus camaradas, e brinco de adivinhar comigo mesmo para saber com quem Olívia Santana anda distribuindo o acréscimo de 2.385%. Decerto uma parte disso vai para a empregada doméstica de sua casa – de lavadeira ela não precisa porque, óbvio, existe máquina de lavar roupa. Outro pedacinho dos 2.385% devem estar bem mal distribuídos entre a assessoria da vereadora – diz-se, à boca graúda, ser a assessoria de menor remuneração na Câmara. Uma parte, talvez, ela conceda às Instituições Raciais que ela defende – nem só de idéias e raça vive o homem. Mas ainda assim é pouco para justificar 2.385%.


(A inflação nunca chegará a 2.385%; o aumento salarial, em crescimento, desde Getúlio Vargas, não chega nem perto de 2.385%; nunca um candidato, em comparação à eleição passada, terá um acréscimo de votos de 2.385%; o número de analfabetos, em cinqüenta anos, não diminuiu 2.385%; e o Brasil não sabe quando sorrirá 2.385% de crescimento do seu PIB. Valor assim, até o presente momento, cabe apenas aos adiposos bens da vereadora Olívia Santana).


Claro que a “negona” não foi a única na Câmara a passar pela situação chata de ver seu patrimônio crescer metros de cifras. À frente dela, em valores absolutos, estão Beto Gaban, Gilberto José, Silvoney Sales, Paulo Magalhães Júnior e Paulo Câmara. Mas nenhum, ninguém, entre os vereadores e vereadoras, sofreu um acréscimo tão significativo quanto Olívia Santana. Mas faça-se justiça: ela é mulher, nasceu na periferia, passou por dificuldades, filha de lavadeira, é preta, é comunista e é feminista, ou seja, possui justificativa suficiente para justificar 2.385%. Por sinal, sugiro que se coloque tal crescimento no livro dos recordes, pois além de estimular outros parlamentares a encherem bem a declaração de seus bens, tentando superar a marca da vereadora, tê-la no livro dos recordes, com este recorde, seria ótimo para o Partido (diminuiria a distância talvez com o povo), seria bom para o movimento negro (de forma adequada a cota estaria estabelecida também no livro dos recordes) e bom também para a bandeira feminista (mais uma mulher a vencer o Guiness).


Não estou dizendo aqui que a vereadora não tem direito a conforto, casa própria, estabilidade e roupa lavada. Isso desejo, verdadeiramente, para todas as pessoas, sem distinção de melanina. Quero saber apenas de onde saiu o acréscimo de 2.385%. Ou mais que isso, saber se há ou não há contradição entre o discurso feroz de Olívia Santana e a declaração de bens recheados de Olívia Santana. Pois saibam: fosse a ingenuidade ainda característica minha, juro que hoje estaria tenso esperando a forma como a sociedade, o Partido e as Instituições Negras reagiram. Mas são outros tempos, justificativas socialistas e raciais existem de sobra para legitimar um percentual tão abusivo.


Quando Olívia Santana chega ao seu bairro do coração – Engenho Velho da Federação –, embora ela não esteja no coração do bairro, ninguém, nem eu, iria imaginar que aquela nobre vereadora, guiada por seu motorista, no velho Fiat Uno que ela sempre fez questão de não trocar, passaria, em quatro anos, por um acréscimo de 2.385%. Ela bem sabe fazer a coisa certa, pois não cairia bem para uma parlamentar comunista, militante negra e feminista fervorosa desfilar em carro de última geração, por isso, deve-se, sim, transformar dinheiro em bens menos visíveis, bem mais lucrativos. A discrição de seus bens cai por terra num olhar mais atento, detalhado, feminino, quando se percebe a marca de sua bolsa, a marca de seus sapatos.


(Estupefata com um valor percentual que nem a pobre coitada acredita existir, dona Fulana não sei de onde, me disse, cheia de si, cheia de sabedoria: “É uma falta de absurdo!” )


E faço um singelo, mas, ao menos, simbólico pedido à vereadora: por favor, querida, ao pisar no chão da periferia – lugar comum de seu mandato – pise-o com cuidado, carinho, se possível, como quem desliza macio sobre ovos, para não machucar com seu solado de 2.385% de crescimento de bens em quatro anos, o suado asfalto por onde passam e seguem adiante, séculos adentro, sem percentagem alguma que lhes favoreça, as lavadeiras, as filhas das lavadeiras, os negros e as negras pobres da cidade do São Salvador.