quarta-feira, 27 de maio de 2009

Da inutilidade da ONU (o que não se usa, joga fora).

Detesto quando digo, quando dizem: “Eu sou do tempo...”. Qualquer saudosismo é insuportável e invariavelmente preconceituoso. Mas, não tem jeito, sou mesmo de um tempo em que aquilo que não usamos mais é porque já não nos serve mais, e se não serve, não presta, é preciso jogar fora. Ainda não eram os tempos emergentes da reciclagem. Decerto, de tudo que percebo no mundo e considero inútil – não são poucas as coisas inúteis ao nosso redor – a única suposta inutilidade que não contesto é a poesia, embora eu tenha cá um tanto de resistência quanto a esse teor inútil que há algum tempo teóricos e poetas dão à bela arte. Mas isso eu discuto depois. Pois bem, o resto, todo o restante que julgo inútil, não hesito, desprezo, absolutamente, jogo fora. Inclusive a ONU.

Sim, inclusive a ONU. Porque há quem ainda questione como pode o avião voar, como pode uma pessoa ressuscitar no terceiro dia, de onde viemos, para onde vamos. E são todos, com seu devido valor, questionamentos relevantes. Somente a inutilidade da ONU é inquestionável. Porque fora inaugurada depois de um inevitável surto epidêmico pacifista, fruto das bombas atômicas sobre solo japonês, a Organização das Nações Unidas apareceu, à época – e pelas circunstâncias não seria diferente –, dentro dos moldes em que surgem os salvadores da pátria, os tais redentores. A diferença é que não se personificou, veio como instituição, e sua função é além-pátria, é planetária.

E começou assim mesmo: depois do pesado troco que os Estados Unidos deram ao Japão, um grupo de pessoas sensatas, é verdade, decidiu que era necessária a existência de uma instituição que estivesse acima dos interesses particularmente nacionais, uma instituição que, nos padrões de poder de um Estado, fosse, no mínimo, mediadora em relações diplomáticas mais tensas e até mesmo tivesse autonomia suficiente para frear ou reprimir relações em que a diplomacia e a mediação não fossem suficientes.

Não há como negar a boa intenção, embora para excesso de boa intenção nós já temos o inferno. Boa intenção não enche a barriga de ninguém. Não convence ninguém. A ONU disso mal passou porque ficou tudo no papel, até respeitado, verdadeiramente um documento legitimado por inúmeros países, mas que quando recai para vias práticas, não deixa de ser mero coadjuvante, produto final de celulose. É que a função de mediadora da ONU é demasiado mediadora, a ponto de, no meio de uma efervescente discussão entre dois países, sua mediação tornar-se muda, impraticável, impotente. E daí não haverá freio que detenha um conflito além das agressões verbais.

Essa semana, saltaram das cadeiras, assustados, chefes de Estado, gigantescos empresários, acadêmicos, pacifistas, mídia em geral, com o lançamento de mísseis norte-coreanos, último sobrevivente comunista do século passado em pleno século XXI. Só o fato de persistir vivo hoje um país com tal característica já nos dá bem uma noção da inutilidade da ONU. Mas, é óbvio, a mediadora não se calou, pelo contrário, esbravejou, esperneou, deu chilique, lançou ofício, panfleto, manifesto contra o governo da Coréia do Norte. E a gritaria surtiu efeito: depois do primeiro míssil lançado, o ditador avisou que lançaria outro, e assim o fez. Bastou outra ação presepada da ONU, e já avisaram o lançamento do terceiro míssil também. Por aí já dá para ver o apagado poder de fogo da ONU, que faz questão de ser a primeira a se manifestar, pronunciar, responder, quando o assunto é universal, digamos assim, e é a primeira a agir – porque há quem ignore, mas a inércia é um tipo de ação.

Durante mais da metade da era Bush, os Estados Unidos massacraram civis e viram seus jovens soldados massacrados no Iraque; a Bósnia, por anos, viveu batalhas legitimadas sob a direção de um tirano; a Faixa de Gaza, desde sempre em pé de guerra, jamais obteve intervalo de bombardeio; sem falar nas históricas guerras civis em alguns países africanos. E estou falando de conflitos que continuaram existindo antes da Segunda Guerra Mundial e de outros tantos Pós-guerra. E então o que fez a ONU? Apitou, lógico, seu velho apito mudo.

Mas não sejamos injustos, há mesmo dois, conta-se assim, nos dedos, dois trabalhos verdadeiramente efetivos executados pela ONU: levar suas tropas a países devastados para lá serem devastadas; e arremessar, de helicópteros, alimentos a gente faminta em território onde nem a ONU ousa tocar. Nesse caso, dos alimentos, é como a atitude espírita de levar sopa toda quinta-feira à noite para moradores de rua, mas, claro, numa proporção muito maior.

Embora tenha passado décadas de absoluta inutilidade, hoje, até o Vaticano tem mais voz e ação efetiva do que a ONU. Talvez por causa da robusta face, do discurso agressivo do Ratzinger. Talvez seja isso, a ONU precisa, de fato, ser um Ratzinger, pois sua efetividade é invisível, ineficaz como a de quem vê algo errado, avisa e fica de parte, resmungando, olhando. Se fora criada para cumprir esse papel, melhor mesmo que não existisse porque, depois de sua fundação, reais mudanças não ocorreram, continuamos passando por covardes conflitos – que a ONU nunca resolveu, até os agrava –, crises financeiras – que a ONU não questiona nem mesmo o sistema capitalista –, fomes saciadas, vez ou outra, por campanhas – patrocinadas pela ONU – de artistas repletos de remorsos, e a ONU, rígida como um poste, levanta, a todo momento, soluções que não passam daquela mesa importante, impotente.

Já dizia um velho historiador que o que vale é o que fica na História, ainda que isso dependa de quem escreva essa História. No caso da ONU, pelo grau de sua inutilidade, mesmo comparsa explícita de grandes financiadores, implícita comadre de ditadores e pseudo-democratas, não há História que salve sua pele, não há mentira que dure tanto tempo porque o que não nos serve, um dia – o dia virá –, jogamos fora. No lixo da humanidade um cantinho reservado para a ONU. Reciclagem tem limite.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

A Bolsa de Valores tem cheiro de Anarquia.


Não há espaço para Ferreira Gullar na Bolsa de Valores. A selvageria capitalista vive hoje seu apogeu espiritual que é o prenúncio de uma total anarquia. Porque não consigo desvencilhar a natureza humana do estabelecimento de uma ordem social que a oriente, pois que é imprescindível a existência de uma instituição, ainda que imposta, que nos regule, que determine nossas condutas para a boa convivência humana.


Vasculhando jornais antigos, dia desses, vi o rosto do Ferreira Gullar. Era uma entrevista em que o poeta dizia que o sistema capitalista, embora nos dê a aparência de uma ciência exata e lógica, é impulsionado pela emoção, por conta da competitividade, do desenvolvimento e constante ininterrupto avanço tecnológico concorrencial. Por outro lado, afirmava o poeta, que, para engano de muitos, o socialismo sim é que é um sistema socioeconômico racional, pois pensa-se a organização civil pautada no cálculo equitativo e significativamente comum a todos os membros. Nisso concordo com o Ferreira Gullar. Apenas nisso. Sua análise é bem fundamentada e brilhante, e vale mais do que uma antologia poética.


O raciocínio do poeta fez-me ver a barbárie para onde estamos caminhando, a disputa desmedida e desregrada do mercado ganha cada vez mais proporções em que a ética se desmancha e legitima-se a desleal e covarde concepção de um “vale-tudo”, sem deixar de fora golpes baixos. Óbvio que não faço aqui, como oposição a esta bagunça financeira, uma apologia a qualquer tipo de tirania estatal, aos moldes de séculos passados ou vindouros. Mas aonde muitos vêem o capitalismo – ou neoliberalismo, como queiram – em sua fase de ascensão globalitária, percebo, nítido, o crescimento de um poder não-institucional um tanto sedutor, moralmente equivocado e desumano: a anarquia do capital.


Previamente já coleciono arrobas de originais anarquistas que devem estar por agora relinchando impropérios contra mim por causa do uso indevido – assim dirão – do termo “anarquia” para a criação de um segundo termo acoplando-o ao capitalismo. Mais do que mera provocação, utilizo o termo para bem definir e comprovar a proposta do mercado: ausência de regras estatais, estabelecimento desmesurado de isenções fiscais, competitividade ultrapassando os limites da ética – palavra infinitas vezes citada em documentos de valor estatal, como a Constituição, por exemplo. Acontece que a comparação irritante, ou melhor, a acusação vexatória que mantenho aqui, concebendo ao capitalismo atual e futuro um caráter anárquico, se dá porque primeiro discordo em absoluto do Anarquismo, que é um não-sistema político sem determinações econômicas, e porque discordo, em específicos aspectos, do sistema capitalista.


Jamais trocaria os avanços tecnológicos e mesmo a existência conflitante de classes por uma barbárie que, bem sabemos, não admite regras, leis e deveres. Mas a pretensão do mercado de se tornar voz ativa e desativar qualquer sopro de comando que venha de instâncias estatais, de fazer de nossos atos e costumes singelos slogans, tornando hábito sonhos unicamente de consumo através de suas invejáveis invenções e produtos de última geração criados a cada semana desrespeita nossa condição de ser humano e elimina códigos milenares de convivência social. Isso contraria nossa natureza, isso sim é uma imposição.


Já os apólogos desse novo anarquismo, quando me refiro à importância do poder de um Estado Civil, que regule, na medida certa, nossa vida socioeconômica, decerto abrirão brechas para o discurso de negação deste tipo de intervenção, alertando para o perigo do surgimento de um regime ditatorial, tal qual vivemos, a rodo, no século passado, onde China personificou-se Mao Tsé-Tung, Cuba concretizou-se referência à aparição de outros tantos comandantes latinos e Rússia esbarrou em Lenins, Trotskis e Stalins por metro quadrado de soviets.


Fico em acordo com a percepção do professor Milton Santos quando diz que o Estado hoje se fortalece para a instituição de regras ditadas pelo mercado. Uma prova cabal se vê aqui no Brasil, onde, antes mesmo de o mercado desmoronar qualquer instituição estatal, os próprios poderes legislativo e executivo já vem dando longuíssimos passos à ausência de crédito e respeito aos olhos da sociedade, pois a cada três dias um escândalo parlamentar é noticiado. E por mais que a mídia – na maioria, grande acionista da anarquia do capital – faça pouco caso da mais-valia e vista-se sempre de vistas grossas ao Congresso e adjacências, uma coisa é certa, contra fatos não há argumentos.


É necessário o grande retorno à busca do equilíbrio entre o que naturalmente desejamos e o que podemos ou não fazer, desde que não fira os desejos de outros indivíduos. E é esse o papel do Estado, a fundamental intervenção à farra mercadológica, impondo freios constitucionais, visando negar a barbárie – fim de tudo – pois esta anarquia de capital é absolutamente reversível, desde que sofra reparos que nos leve a avanços, enfim, sociais, o que é bem diferente da anarquia proposta pelos tais legítimos anarquistas, que desprezam regras, desprezam instituições, transformando em concreto pensamento a poética e naturalmente isolada ilha que Thomas Morus, um dia, levou tão a sério.