Quando meu médico recomendou-me pequenas caminhadas, hesitei um pouco por conta do ato de andar que é coisa que muito detesto, prefiro carro, se o tivesse, até pegar ônibus, ou quando me permito um luxo só, tomo um táxi. Há males, eu já disse, que vêm para o bem. E nesse caso falo nem tanto pelo benefício à minha saúde, mas, mais válido porque, numa dessas caminhadas minúsculas noturnas, pelas bandas do Campo Grande, vi, de perto, a humilhação de umas tantas pessoas enfileiradas à porta do Teatro Castro Alves, arreadas no chão, aguardando, para a manhã seguinte, adquirirem um mísero ingresso para o show de João Gilberto.
Um porém nisso tudo é que de nada serve dizer aqui que “tem gosto para tudo”, porque, neste caso, muito específico, não se trata de gosto. Se trata de qualquer outra coisa, menos de gosto. Sei bem que entre as tantas pessoas que solicitamente se permitiram tamanha humilhação são pouquíssimas as que perdem horas intermináveis escutando músicas na voz do João Gilberto, mínimas as que possuem pôster do João Gilberto na parede do quarto, ínfimas as que entendem porque João Gilberto é o ícone da Bossa Nova. Então, para que tanta humilhação? Talvez a psicanálise, a psicologia social, ou o materialismo histórico possam explicar, a seu modo, tal fenômeno. Arrisco que alguns tantos universitários universitários estavam ali para preencher o currículo com matéria extra-curricular: Show de João Gilberto.
Mas a mim não cabe explicar o que leva tanta gente a se esbofetear, acampar na porta do teatro, gastar valores abomináveis para apreciarem o que verdadeiramente não apreciam, contemplar o que não contemplam, ouvir o que mal podem escutar. Sei apenas que a grande sacada pertence ao próprio João Gilberto, fazendo-se de autista, inventando manias, criando casos, não comparecendo a compromissos, tornando-se por isso reverenciado por todos, sem nem saberem porque reverenciam.
Erraram de João. Entre as tantas personalidades que de forma direta ou indireta influenciaram ou foram moldando o que veio a se chamar de Bossa Nova, o verdadeiro e sempre renovado ícone deste gênero musical foi, sem dúvidas, João Donato. Não desmereço o talento e a importância do João Gilberto. Apenas contesto que seja ele o centro das atenções, o ícone, uma vez que o mesmo não criou nada, apenas encorpou de maneira mais condensada o que Roberto Menescal, Carlos Lira, Tom Jobim, Jonny Alf, Tamba Trio, entre outros já faziam a um modo jazzístico muito peculiar. E só encorpou porque no meio do caminho havia João Donato.
A batida do violão é fruto do samba que foi traduzido, na influência do jazz, por Carlos Lira; a letra descompromissada, alienada, amorosa e coloquial – que é uma revolução na literatura musical brasileira – começa também com Carlos Lira, e ganha maior consistência na poesia melódica do Vinícius de Moraes; o toque da bateria característico – na Tailândia se reconhece a batida de Bossa Nova – é fruto, pasmem, da involuntária criação musical de um baterista, no estúdio, gravando disco do João Gilberto; e mesmo o modo baixinho de se canta – isso sim uma invenção atribuída ao tal ícone – é fruto do incômodo de alguns vizinhos dos prédios cariocas exigindo silêncio nas delirantes madrugadas daqueles jovens, entre violões, que para não causarem maiores desentendimentos foram forçados a cantar baixinho.
Tudo isso antes do João Gilberto, tudo isso na influência significativa de João Donato, através de um instrumento nem um pouco familiar à Bossa Nova: um acordeom. Antes do piano, João Donato tocava acordeom, só que de maneira diferenciada, nem regional nem experimental tornando, a partir daí, o que era jazz numa nova linguagem, a mescla exata que veio dar em tudo o que Roberto Menescal, Carlos Lira, Tom Jobim, Jonny Alf, Tamba Trio e João Gilberto passaram a criar.
De forma espontânea, sem nem saber como, João Donato é quem dá o mote à Bossa Nova, é quem verdadeiramente abrasileira os músicos tão bem encaminhados no jazz, à base de Dick Farney, Cole Poter, Frank Sinatra e Chat Baker. É João Donato quem possui o tal suingue inconfundível, a síntese precisa do que veio a se tornar um gênero musical universal. E tudo sem grandes pretensões a ponto de o próprio João Donato só ter se dado conta de sua peculiaridade e importância muitos anos depois. Sem falar que ainda espontaneamente o próprio João Donato troca o acordeom pelo piano, apenas por considerar o primeiro um tanto incômodo de manusear.
João Gilberto declarou: “Eu faço samba.” Acredito. Quem faz Bossa Nova, quem inventa tudo isso que vem sofrendo influência e assédio até de quem não conhece Bossa Nova é João Donato. É João Donato quem vai ensinar a João Gilberto a batida perfeita, entre ovos fritos ao som de Chat Baker e conversas demoradas do meio-fio de Copacabana à casa de Bené Nunes. É João Donato quem inverte a lógica e se reinventa até hoje, fazendo dessa Bossa constantemente nova, incorporando-a a variados ritmos – atitude bem diferente de João Gilberto, que há séculos se repete, tocando as mesmas músicas, as mesmas batidas, causando em Carlos Lira o vômito de declarar: “João Gilberto parou no tempo.”
Anos atrás, João Donato esteve em Salvador fazendo um pequeno show no Centro Histórico, para uma platéia sem grandes celebridades, em pleno domingo, meio-dia. O ingresso? Uma lata de leite Ninho, tudo revertido para instituições de caridade. Com R$ 180,00 é possível comprar 25 latas de leite Ninho. Com R$ 180,00 é possível: pagar para suportar o atraso de quase duas horas do show de João Gilberto; contribuir para o seu adiposo cachê; e encher ainda mais o cofre do Banco Itaú, que foi quem trouxe João Gilberto de volta aos palcos de Nova York, São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. A simplicidade de um João Donato detonou a existência autista, mítica e mercantilista de um João Gilberto.