sexta-feira, 5 de setembro de 2008

OLÍVIA É 2.385% NEGRA.



2.385% é um valor percentual que jamais imaginei que pudesse existir. Nem faço idéia do que venha a ser 2.385%. Ultimamente levo sustos constantes, sofro pesadelos intermináveis, com números gigantes, cifrões agressivos, valores descabidos – embora a recomendação de meu médico seja a de não me permitir chateações nem emoções fortes. Mas, doutor, é mais forte que eu. E veio impresso estampado no jornal: 2.385%. A quem se refere esse número? Pasme quem ainda inocentemente se pasma: Olívia Santana (a “negona”, a que é “a cara da cidade”, a afro-descendente, a feminista, a filha de lavadeira etc etc). 2.385% é o valor percentual do crescimento, entre 2004 e 2008, de bens declarados pela vereadora ao TRE. Simples assim: em 2004, Olívia declarou R$ 5 mil; em 2008, vergonhosos R$ 125 mil. É o comunismo em processo evolutivo. Rosa Luxemburgo, retorcida na cova, grita de lá: “Isso é acúmulo de capital”.


Pois bem, haverá quem se indigne e me pergunte: “Por que ‘vergonhosos R$ 125 mil’? E a partir daí já sei, sou obrigado a sofrer o antigo discurso comunista de que os “vermelhos” defendem a distribuição de riqueza, não a distribuição de pobreza. Até aí concordo, é bem o meu ponto de vista, desde que efetivamente a riqueza gerada seja realmente distribuída. Mas considero esses R$ 125 mil vergonhosos sim porque em sua justificativa Olívia Santana diz ter conseguido economizar, fazer uma poupança de R$ 40 mil em quatro anos, diz ter conseguido um empréstimo grande, gigantesco, com duas pessoas amigas, fora uma parcela de R$ 20 mil junto ao Banco Real. São vergonhosos porque ao discurso dela não cabem 2.385%, no histórico dela não cabem as justificativas para crescer, de Atenas a Pequim, 2.385%.


Posso conceder crer que ela distribua, como comunista de carteirinha que é, esse valor entre os seus camaradas, e brinco de adivinhar comigo mesmo para saber com quem Olívia Santana anda distribuindo o acréscimo de 2.385%. Decerto uma parte disso vai para a empregada doméstica de sua casa – de lavadeira ela não precisa porque, óbvio, existe máquina de lavar roupa. Outro pedacinho dos 2.385% devem estar bem mal distribuídos entre a assessoria da vereadora – diz-se, à boca graúda, ser a assessoria de menor remuneração na Câmara. Uma parte, talvez, ela conceda às Instituições Raciais que ela defende – nem só de idéias e raça vive o homem. Mas ainda assim é pouco para justificar 2.385%.


(A inflação nunca chegará a 2.385%; o aumento salarial, em crescimento, desde Getúlio Vargas, não chega nem perto de 2.385%; nunca um candidato, em comparação à eleição passada, terá um acréscimo de votos de 2.385%; o número de analfabetos, em cinqüenta anos, não diminuiu 2.385%; e o Brasil não sabe quando sorrirá 2.385% de crescimento do seu PIB. Valor assim, até o presente momento, cabe apenas aos adiposos bens da vereadora Olívia Santana).


Claro que a “negona” não foi a única na Câmara a passar pela situação chata de ver seu patrimônio crescer metros de cifras. À frente dela, em valores absolutos, estão Beto Gaban, Gilberto José, Silvoney Sales, Paulo Magalhães Júnior e Paulo Câmara. Mas nenhum, ninguém, entre os vereadores e vereadoras, sofreu um acréscimo tão significativo quanto Olívia Santana. Mas faça-se justiça: ela é mulher, nasceu na periferia, passou por dificuldades, filha de lavadeira, é preta, é comunista e é feminista, ou seja, possui justificativa suficiente para justificar 2.385%. Por sinal, sugiro que se coloque tal crescimento no livro dos recordes, pois além de estimular outros parlamentares a encherem bem a declaração de seus bens, tentando superar a marca da vereadora, tê-la no livro dos recordes, com este recorde, seria ótimo para o Partido (diminuiria a distância talvez com o povo), seria bom para o movimento negro (de forma adequada a cota estaria estabelecida também no livro dos recordes) e bom também para a bandeira feminista (mais uma mulher a vencer o Guiness).


Não estou dizendo aqui que a vereadora não tem direito a conforto, casa própria, estabilidade e roupa lavada. Isso desejo, verdadeiramente, para todas as pessoas, sem distinção de melanina. Quero saber apenas de onde saiu o acréscimo de 2.385%. Ou mais que isso, saber se há ou não há contradição entre o discurso feroz de Olívia Santana e a declaração de bens recheados de Olívia Santana. Pois saibam: fosse a ingenuidade ainda característica minha, juro que hoje estaria tenso esperando a forma como a sociedade, o Partido e as Instituições Negras reagiram. Mas são outros tempos, justificativas socialistas e raciais existem de sobra para legitimar um percentual tão abusivo.


Quando Olívia Santana chega ao seu bairro do coração – Engenho Velho da Federação –, embora ela não esteja no coração do bairro, ninguém, nem eu, iria imaginar que aquela nobre vereadora, guiada por seu motorista, no velho Fiat Uno que ela sempre fez questão de não trocar, passaria, em quatro anos, por um acréscimo de 2.385%. Ela bem sabe fazer a coisa certa, pois não cairia bem para uma parlamentar comunista, militante negra e feminista fervorosa desfilar em carro de última geração, por isso, deve-se, sim, transformar dinheiro em bens menos visíveis, bem mais lucrativos. A discrição de seus bens cai por terra num olhar mais atento, detalhado, feminino, quando se percebe a marca de sua bolsa, a marca de seus sapatos.


(Estupefata com um valor percentual que nem a pobre coitada acredita existir, dona Fulana não sei de onde, me disse, cheia de si, cheia de sabedoria: “É uma falta de absurdo!” )


E faço um singelo, mas, ao menos, simbólico pedido à vereadora: por favor, querida, ao pisar no chão da periferia – lugar comum de seu mandato – pise-o com cuidado, carinho, se possível, como quem desliza macio sobre ovos, para não machucar com seu solado de 2.385% de crescimento de bens em quatro anos, o suado asfalto por onde passam e seguem adiante, séculos adentro, sem percentagem alguma que lhes favoreça, as lavadeiras, as filhas das lavadeiras, os negros e as negras pobres da cidade do São Salvador.