sexta-feira, 15 de maio de 2009

A Bolsa de Valores tem cheiro de Anarquia.


Não há espaço para Ferreira Gullar na Bolsa de Valores. A selvageria capitalista vive hoje seu apogeu espiritual que é o prenúncio de uma total anarquia. Porque não consigo desvencilhar a natureza humana do estabelecimento de uma ordem social que a oriente, pois que é imprescindível a existência de uma instituição, ainda que imposta, que nos regule, que determine nossas condutas para a boa convivência humana.


Vasculhando jornais antigos, dia desses, vi o rosto do Ferreira Gullar. Era uma entrevista em que o poeta dizia que o sistema capitalista, embora nos dê a aparência de uma ciência exata e lógica, é impulsionado pela emoção, por conta da competitividade, do desenvolvimento e constante ininterrupto avanço tecnológico concorrencial. Por outro lado, afirmava o poeta, que, para engano de muitos, o socialismo sim é que é um sistema socioeconômico racional, pois pensa-se a organização civil pautada no cálculo equitativo e significativamente comum a todos os membros. Nisso concordo com o Ferreira Gullar. Apenas nisso. Sua análise é bem fundamentada e brilhante, e vale mais do que uma antologia poética.


O raciocínio do poeta fez-me ver a barbárie para onde estamos caminhando, a disputa desmedida e desregrada do mercado ganha cada vez mais proporções em que a ética se desmancha e legitima-se a desleal e covarde concepção de um “vale-tudo”, sem deixar de fora golpes baixos. Óbvio que não faço aqui, como oposição a esta bagunça financeira, uma apologia a qualquer tipo de tirania estatal, aos moldes de séculos passados ou vindouros. Mas aonde muitos vêem o capitalismo – ou neoliberalismo, como queiram – em sua fase de ascensão globalitária, percebo, nítido, o crescimento de um poder não-institucional um tanto sedutor, moralmente equivocado e desumano: a anarquia do capital.


Previamente já coleciono arrobas de originais anarquistas que devem estar por agora relinchando impropérios contra mim por causa do uso indevido – assim dirão – do termo “anarquia” para a criação de um segundo termo acoplando-o ao capitalismo. Mais do que mera provocação, utilizo o termo para bem definir e comprovar a proposta do mercado: ausência de regras estatais, estabelecimento desmesurado de isenções fiscais, competitividade ultrapassando os limites da ética – palavra infinitas vezes citada em documentos de valor estatal, como a Constituição, por exemplo. Acontece que a comparação irritante, ou melhor, a acusação vexatória que mantenho aqui, concebendo ao capitalismo atual e futuro um caráter anárquico, se dá porque primeiro discordo em absoluto do Anarquismo, que é um não-sistema político sem determinações econômicas, e porque discordo, em específicos aspectos, do sistema capitalista.


Jamais trocaria os avanços tecnológicos e mesmo a existência conflitante de classes por uma barbárie que, bem sabemos, não admite regras, leis e deveres. Mas a pretensão do mercado de se tornar voz ativa e desativar qualquer sopro de comando que venha de instâncias estatais, de fazer de nossos atos e costumes singelos slogans, tornando hábito sonhos unicamente de consumo através de suas invejáveis invenções e produtos de última geração criados a cada semana desrespeita nossa condição de ser humano e elimina códigos milenares de convivência social. Isso contraria nossa natureza, isso sim é uma imposição.


Já os apólogos desse novo anarquismo, quando me refiro à importância do poder de um Estado Civil, que regule, na medida certa, nossa vida socioeconômica, decerto abrirão brechas para o discurso de negação deste tipo de intervenção, alertando para o perigo do surgimento de um regime ditatorial, tal qual vivemos, a rodo, no século passado, onde China personificou-se Mao Tsé-Tung, Cuba concretizou-se referência à aparição de outros tantos comandantes latinos e Rússia esbarrou em Lenins, Trotskis e Stalins por metro quadrado de soviets.


Fico em acordo com a percepção do professor Milton Santos quando diz que o Estado hoje se fortalece para a instituição de regras ditadas pelo mercado. Uma prova cabal se vê aqui no Brasil, onde, antes mesmo de o mercado desmoronar qualquer instituição estatal, os próprios poderes legislativo e executivo já vem dando longuíssimos passos à ausência de crédito e respeito aos olhos da sociedade, pois a cada três dias um escândalo parlamentar é noticiado. E por mais que a mídia – na maioria, grande acionista da anarquia do capital – faça pouco caso da mais-valia e vista-se sempre de vistas grossas ao Congresso e adjacências, uma coisa é certa, contra fatos não há argumentos.


É necessário o grande retorno à busca do equilíbrio entre o que naturalmente desejamos e o que podemos ou não fazer, desde que não fira os desejos de outros indivíduos. E é esse o papel do Estado, a fundamental intervenção à farra mercadológica, impondo freios constitucionais, visando negar a barbárie – fim de tudo – pois esta anarquia de capital é absolutamente reversível, desde que sofra reparos que nos leve a avanços, enfim, sociais, o que é bem diferente da anarquia proposta pelos tais legítimos anarquistas, que desprezam regras, desprezam instituições, transformando em concreto pensamento a poética e naturalmente isolada ilha que Thomas Morus, um dia, levou tão a sério.