Ponha-se no meu lugar, Dorival, e quando um dia voltar a por os pés em Salvador irá sentir que o chão não é mais de barro e o pescador virou empregado – com carteira assinada – do dono da embarcação. Clarividente, mesmo sem ter vivido a cidade do Cancioneiro, são as transformações por que passou nossa cidade, de província a metrópole – embora resquícios provincianos pairem num ou noutro canto, mas são largos os passos que estamos dando para a modernidade quando estabeleceremos de vez a alcunha de “cidade grande”.
Vejam bem, depois de mais de quarenta anos sob o poder de Antônio Carlos Magalhães, conhecido político populista que tratava a Bahia tal fosse sua fazenda, sob o julgo do chicote e de lendários crimes, Salvador primeiramente se livrou do coronel em 2004, e a Bahia, como impulso natural, em 2006 fez o “homem” cair derrotado, vendo sua terra nas mãos de um petista. Já aí, no âmbito político institucional, Salvador dá as primeiras demonstrações de progresso.
O caso do Metrô demonstra também nossa efetiva intenção, uma vez que em função do crescimento populacional estúpido estupendo naturalmente torna ineficiente o já comum meio de transporte público que são os ônibus. O atraso nas obras creio que se deva aos inúmeros fatores provincianos que restam ainda em alguns espíritos: falta de vontade política, preguiça e desvio escancarado de verbas. Mas só o fato de ver trilhos que outrora carregavam bondes perdendo espaço para o asfalto já é motivo de alívio e ligeira felicidade de que estamos bem próximos do tão almejado desenvolvimento.
A instalação de indústrias multinacionais e grandes empresas nacionais vem gerando em nossa cidade não só o desemprego mas também o subemprego, com baixos salários e alta exploração, e consequentemente enriquecendo acionistas e empresários, contribuindo de forma significativa e legítima com o sistema capitalista. Tamanha importância no cenário econômico internacional era algo impensável na província do Caymmi, que por sinal, junto com Jorge Amado, eram as únicas empresas – um com a música, o outro com a literatura – que vendiam algo para o mundo, revertendo em consideráveis benefícios à cidade, mas nada que afetasse, como hoje afeta, a bolsa de valores de Tóquio, por exemplo.
As empresas de tele-marketing, que são hoje, em Salvador, o grande e único foco para se conseguir um trabalho, apesar da mínima remuneração, nos trouxeram, enfim, o necessário canal com o restante do planeta, através de seus sistemas e programações padronizados, cabendo a este ramo, cá nesta outrora província, um relevante papel na economia nacional e no respeitado acúmulo de capital por empresas, principalmente, estrangeiras.
A conseqüência destas ações voltadas para o mundo globalizado vai acarretar em mudanças imprescindíveis na estrutura da polis: onde se via campos de barro, vê-se prédios; onde havia calçadas largas, há lojas; onde haviam ambulantes avulsos, existem hoje profissionais liberais (vestidos de coletes) cadastrados e treinados para viabilizar suas vendas em ônibus; onde se via o mar, vê-se um shopping center moderníssimo. Sem falar na criação exaustiva de estradas, vias e viadutos, pois com a crescente demanda de mão-de-obra, hoje, graças a Deus, diversificada, carros, motos, caminhões engolem a cidade, fazendo desta uma grande arquitetura de asfalto em nome, exclusivamente, da modernidade.
Tudo isso, toda essa conquista, não seria possível se não houvesse o aprumado toque de necessárias e requintadas ações estatais que garantam os fins. E os meios são a tão polêmica política do controle de população que em Salvador vem sendo colocada em prática através de seu mais eficiente alicerce estatal: a polícia. Sem exatidões espúrias, há quase uma década nossa cidade promove chacinas, declaradamente, maior parte delas, executadas por policiais, em bairros periféricos da cidade – isso sem contar os assassinatos cometidos por cidadãos comuns, sejam eles infratores, sejam simples pessoas, que, por algum motivo banal, matam.
Graças a esta política, adotada pelos Governos anteriores e ratificada de forma explícita pelo atual Governo, demos um importante passo à modernidade, pois hoje, com os mais de 8.000 homicídios praticados de 2004 para cá, estamos pau a pau nos números com Rio de Janeiro e São Paulo, cidades, que neste e nos citados itens, há alguns anos, pareciam muito distantes de nós. Porque, façamos um trato, não há cidade grande que possa assim ser chamada se não houver este controle (candelárias, carandirus). E ainda em cima disso, um dado curioso é que deste tanto de – digamos assim, para não ficar moralmente pesado – eliminação necessária ao desenvolvimento sócio-econômico, mais de 85% eram negros ou pardos pobres, deixando evidente que a política adotada é coerente e tem alvo certo, seja culpado ou não (como nos casos mais recentes do menino Djair e do jovem artista circense Ricardo Mattos).
Varela, que um dia vendeu picolé na rua, teve a sorte de ver essas transformações e delas ser um dos tantos colaboradores, entendendo-as e as legitimando ao seu modo, perdoada seja sua insensatez, às vezes abrangente, que é ainda resquício da província, mas ainda assim buscando, a partir deste ano, o topo do que Salvador, no meio da sua significativa mudança, precisa para varrer longe a mínima baianidade (leia-se província) deixada e abandonada por Caymmi e companhia: ter um dos seus legítimos porta-vozes populistas, o Raimundo Varela, no atual contexto, - diferente do de Fernando José -, absolutamente globalizado, transformado no prefeito da cidade.
E uma coisa puxa a mesma coisa: na Paraíba, dias atrás, um garoto de 9 anos de idade foi assassinado, a tiros de espingarda, pelo vizinho porque estava roubando manga no quintal do mesmo. Pois vejam só, a Paraíba, explícita província, quem diria, já dá seus primeiros passos rumo à modernidade.