segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

E se não fosse a pirataria...


Ontem escutei o mais recente disco do Chico Buarque, Carioca. Já estava achando-o enfadonho quando, por um impulso, desses que não sabemos bem porque surgem, me dei conta da importância sócio-cultural da divulgação artística feita através da venda ilegal de produtos não-originais: a pirataria. Inevitavelmente, escutando Chico, me lembrei daquela irrelevante Campanha em que o consagrado compositor participou, a tal Campanha contra a Pirataria. Como se já não bastasse, hoje, a quase completa insignificância da produção atual deste artista, ele ainda assina um compromisso como este, uma atitude autoritária e um total desleixo com a real propagação das manifestações artísticas. Não escutei o disco até o fim. Creio não ter perdido muita coisa.

É óbvio que não estou aqui negando a raiz maior da prática de venda ilegal de produtos, que é decerto um crime, absolutamente contrariando leis e direitos autorais. Apenas digo que minha defesa à pirataria se dá pela via prática com que as coisas acontecem, ou seja, não houvesse a pirataria, concretamente falando, muitas pessoas não teriam acesso a filmes e músicas que, em variados casos, mudaram a vida dessas pessoas, fazendo com que a arte cumpra objetivamente seu papel. Claro que se paga um preço por isso, mas considero impagável e fundamental a oportunidade de as pessoas terem acesso a qualquer tipo de manifestação artística.

A verdade é que são poucos os do meio artístico que berram contra os abusivos preços de filmes e discos originais à venda. Pelo contrário, há mesmo uma legitimação por parte destes, cheios de argumento aparentemente coerente, mas, que na prática, não vão fundo na questão. Um exemplo bem improcedente é o da banda Harmonia do Samba, que começou a carreira tocando nos chamados guetos e teve sua ascensão popular graças à divulgação de suas músicas através de cópias não registradas dos shows. Depois disso a banda do Xandy chegou às paradas de sucesso sem precisar da tão comum e ilegal mãozinha do jabá. A banda assinou contrato com Gravadora e temos que aturar hoje o vocalista da banda, num ou noutro programa de auditório, mal dizer aquilo que o fez chegar aonde chegou.

Outro argumento muito utilizado para se combater a pirataria é o fato de que se não compramos produtos originais isso faz com que milhares de pessoas que trabalham direta ou indiretamente com a produção destes sejam desempregadas. Mas aí está um caso a parte. Sejamos sinceros e sensatos: há uma função social, quase às escuras, que vem sendo cumprida de forma espontânea através da prática ilegal em evidência. Um caso muito simples: O disco Construção, de Chico Buarque, lançado em 1971, é considerado um clássico do compositor, pelos belíssimos arranjos, as letras bem trabalhadas e até mesmo a circunstância histórica em que o mesmo surge. Pois bem, este disco, remasterizado no formato CD, há oito anos atrás - quando ainda não havia explodido por completo o mercado ilegal - estava sendo vendido numa grande loja de departamento ao amargo e valoroso preço de R$ 38,00. Cinco anos depois, o mesmo disco - aí sim o mercado pirata já mostrava todas as suas garras -, na mesma loja, era vendido, aos montes, pelo singelo preço de R$ 10,00. Preço este nitidamente viável. Em síntese, por agora, por causa da enorme procura pela produção de falsificados, as lojas tentaram achar um caminho curto para manter de pé suas vendas, o que deixou evidente que independente de pirataria é possível sim vender discos a preços verdadeiramente populares. Que é possível sim manter empregados os funcionários das Gravadoras e todos aqueles que ganham indiretamente com a venda legal de produções artísticas. O que a pirataria tem feito – além de divulgar e acrescentar mais arte à vida das pessoas, diretamente vendendo seus produtos e indiretamente forçando a venda de produtos originais a preços acessíveis – é diminuir o exorbitante lucro de uns e outros.

Tem sido de grande relevância as transformações porque passa o mercado pirata, cada vez mais se profissionalizando, criando um código paralelo de relações empresa-consumidor. Certa vez em que eu estava passando por ambulantes no centro da cidade, fiquei maravilhado, primeiro, com o marketing espontâneo na venda destes produtos: “Tropa de Elite, filme de Olavo, de Paraíso Tropical”, “Ó pá aqui ó, Ó paí ó”, “Churek 3, lançamento” etc etc. E o que me impressionou também foi a diversidade de filmes à venda, pois vi, quase sem crer, ambulantes vendendo DVDS por seguimento, uns que vendiam apenas gênero gospel, outros voltados para o público em geral, com filmes que ainda nem haviam chegado nos cinemas, ambulantes que eram especializados, à luz do dia, em filmes pornô e seguimentos só para MPB, samba e filmes clássicos e Cult, todos esses a R$ 5,00 cada. Percebi ali o crescimento real de uma indústria inteligente. Além de tudo, responsável, pois cada DVD vendido leva um carimbo ou etiqueta, na contracapa, com informações do vendedor: número de telefone e endereço para novas aquisições e troca do produto, caso ocorra algum problema.

Inegável que tudo isso acontece às claras com o consentimento - arrisco dizer – legítimo do Estado. Porque é simples pensar sobre isso: se não fosse a pirataria esse contingente todo que hoje vive do comércio ilegal estaria fazendo o que? Certamente saqueando mercados, roubando bancos, outros estariam criando grupos de guerrilha, sonhando revoluções, e muitos jovens - mais do que os que já estão – entrariam para o tráfico de drogas. A pirataria, pasmem, interessa ao Estado porque mantém a ordem. Claro que declaradamente nenhuma autoridade vai dizer isso, seria politicamente incorreto. O que vão fazer aí é uma ou outra apreensão de produtos falsificados, mas nada muito relevante e efetivo. Tanto que a falida Campanha não partiu do Estado, partiu das Gravadoras. E embora, com o mercado informal, o Estado não ganhe nada, o que vale aqui é, como já disse, manter a ordem e assegurar sem incômodos as brechas e regalias que o mesmo fornece aos que dele se deleitam.

Tomo a pretensiosa atitude de dizer que o “x” da questão não está no ambulante do centro da cidade, nem na indústria paralela que cresce a cada dia. Se se deve combater algo é preciso repensar sobre os domésticos avanços digitais. A grande pirataria escancaradamente legitimada são os programas de cópia de arquivos virtuais: emule & cia. Porque, vejam bem, basta que apenas eu hoje compre um disco, um simples exemplar do disco de Chico Buarque, e o grave em meu computador. Está feito. Um internauta na Tailândia terá acesso a ele e se acaso gostar muito e achar que aquilo pode lhe garantir algum dinheiro ele vai fazer inúmeras cópias e vendê-las. Mais do que claro: a pirataria - a do ambulante, a da indústria criminosa paralela - é apenas conseqüência de uma situação ainda sem questionamento concreto e de solução quase impraticável. E em meio a tanto caos, o mais importante e constitucional está sendo feito: o acesso incondicional às artes para o povo.