Entusiasmada com os noticiários das eleições presidenciais dos Estados Unidos, dona Carmelita, moradora do Pero Vaz, disse-me um dia: “Eu vou votar no Obama!” Marrom como o democrata, esta simpática senhora acompanhou, orgulhosa, o surgimento – de uma hora para outra – de uma nova raça norte-americana: os marrons.
A palavra “medíocre” interessa muito menos pela sua semântica do que pela sua sonoridade. Dado que sou a utilizar as palavras de forma clara e coerente, digo que se o comentário do Berlusconi, presidente da Itália, pode ser considerado infeliz, quando ele, cheio da razão, proclama: “Barak Obama é bronzeado!”, não hesito em dizer que a auto-afirmação do próprio Obama, quando diz: “Eu sou marrom!”, é, pavorosamente, medíocre. Pois bem, contentem-se, Barak Obama é marrom. Olhando assim, vemos que na senzala do norte Obama decepa o pé, nega sua raiz, nega-se negro, que, especificamente no caso dos Estados Unidos, é uma lamentável declaração, pois, além de fugir da briga, do acirrado conflito bipolar de séculos, trás à tona um sutil questionamento: se o Obama não se considera negro, por que é que o movimento negro do mundo todo assim o considera?
Talvez a emergência de se retirar o Bush do poder, colocando em seu lugar um candidato do partido adversário, tire um pouco o foco da declaração do democrata, fazendo assim valer o argumento um tanto ortodoxo dos movimentos negros, que pouco se interessam que o Obama prefira-se marrom, pois, vale mais o que eles, do movimento, consideram, o que não se diferencia muito da satisfação que sentem estes mesmos ortodoxos pelo posto que Condoleezza Rice ocupa, sobrepondo a melanina às ações e discursos da Chefe de Estado.
Sim, Obama é marrom. Porque em nenhum momento de sua campanha trouxe, da devida maneira, o discurso em favor de negros e negras estadunidenses, em nenhum momento citou de maneira contundente referências do movimento negro, preferiu a pose de bom moço, negando-se, como se não existisse o conflito, como se, pacificamente, estivesse resolvida a questão racial pelo simples fato de dizer-se, abertamente, marrom. Creio que o Obama, para chegar a tão pobre conclusão deve ter-se olhado no espelho, num dia revelador, e por se ver menos preto que o pai (preto como betume), menos claro que a mãe (branca como a neve), convenceu-se: “Eu sou marrom.” O problema é que ele levou o espelho para o palanque. E a fundamental diferença, que, assim parece, de nada serviu ao presidente marrom, é que a corajosa atitude de seus pais, assumindo um relacionamento, ultrapassando as barreiras da pele, numa época complicada, em que até bebedouros eram instrumento de racismo, foi, inegavelmente, uma atitude revolucionária. Revolução esta que o Obama tem em mãos, mas despreza, preferindo um tom mais leve.
Há quem diga que ter-se declarado marrom é, talvez, uma jogada política, uma forma de chegar a todos sem partir para o embate como um desequilibrado, como se levasse em conta o temor de Sartre ao afirmar do perigo de um racismo às avessas. Honestamente, não valido o medo do Sartre e descreio completamente dessa teoriazinha da conspiração. A declaração aparentemente apaziguadora do Obama, quase “Lula Paz e Amor”, como se pretendesse mostrar que ele não está ali para acirrar ainda mais o conflito racial em seu país, prejudica mais do que auxilia, já que serve apenas para manter esta realidade no mesmo patamar, pois não revitaliza, nos negros estadunidenses, o sentimento de luta e afirmação tão bem exercidos por inúmeros expoentes das décadas de 60 e 70 do século passado. Pois bem, dirão que isso fora necessário apenas no século passado, as circunstâncias atuais são outras. Sim, as circunstâncias são outras, mas é fato que o convívio entre brancos e negros nos Estados Unidos permanece estagnado, e não é por acaso, nem mesmo diferente do restante do mundo, que a injusta distribuição de renda ou mesmo uma crise financeira global afeta, diretamente, a vida de negros e negras estadunidenses.
Muito diferente do que acontece aqui, onde há uma nítida gama de tonalidades de melanina, trazida à luz por Gilberto Freyre, a questão racial nos Estados Unidos não se estabelece por sutilezas e falsa moral, muito menos está incorporado na cultura deles o nosso cultural racismo velado. Lá é de um extremo a outro, ou é negro ou é branco (fora isso, vêm os latinos, o que já é adversário mais recente e entra, decerto, em outro contexto). Este conflito sempre explícito aos olhos do universo jamais sofreu grandes alterações, pois, desde sempre houve uma separação das cores, que vai desde localizações até classes sociais. Fala-se em bairros negros, em classe média negra... assim também ocorrendo com os brancos.
A medíocre declaração de Obama serve de reflexo para sabermos a quantas anda o estado atual de auto-afirmação racial de seu país, serve para vermos o quão a negação de si mesmos por parte dos negros deixa de ser uma negação velada e torna-se, cada vez mais, uma explícita derrota, que se dá em todos os aspectos, da estética à economia, sobrando a caricatura de negros assumidos para os emergentes milionários negros, oriundos do RAP, principalmente, que exploram e desmoralizam – ora, ora – outros negros que não tiveram a mesma sorte nem talento de cantar a realidade do gueto, vivendo em mansões, montados em seus carros conversíveis, com a boca cheia de dentes de ouro.
Enquanto no Brasil, o ator Milton Gonçalves sofre perseguição por parte do movimento negro por interpretar, em horário nobre, um deputado corrupto – como se para roubar dinheiro público fosse necessário medir a melanina –, não ouvi um estrondo sequer por parte desse mesmo movimento inquirindo, condenando Obama, considerando-o, naturalmente, um covarde porque não assume sua cor, não assume sua raça, fica em cima do muro, nem lá nem cá, prefere ser assim, marrom. Como assim?