terça-feira, 11 de novembro de 2008

COMO ASSIM MARROM?


Entusiasmada com os noticiários das eleições presidenciais dos Estados Unidos, dona Carmelita, moradora do Pero Vaz, disse-me um dia: “Eu vou votar no Obama!” Marrom como o democrata, esta simpática senhora acompanhou, orgulhosa, o surgimento – de uma hora para outra – de uma nova raça norte-americana: os marrons.


A palavra “medíocre” interessa muito menos pela sua semântica do que pela sua sonoridade. Dado que sou a utilizar as palavras de forma clara e coerente, digo que se o comentário do Berlusconi, presidente da Itália, pode ser considerado infeliz, quando ele, cheio da razão, proclama: “Barak Obama é bronzeado!”, não hesito em dizer que a auto-afirmação do próprio Obama, quando diz: “Eu sou marrom!”, é, pavorosamente, medíocre. Pois bem, contentem-se, Barak Obama é marrom. Olhando assim, vemos que na senzala do norte Obama decepa o pé, nega sua raiz, nega-se negro, que, especificamente no caso dos Estados Unidos, é uma lamentável declaração, pois, além de fugir da briga, do acirrado conflito bipolar de séculos, trás à tona um sutil questionamento: se o Obama não se considera negro, por que é que o movimento negro do mundo todo assim o considera?


Talvez a emergência de se retirar o Bush do poder, colocando em seu lugar um candidato do partido adversário, tire um pouco o foco da declaração do democrata, fazendo assim valer o argumento um tanto ortodoxo dos movimentos negros, que pouco se interessam que o Obama prefira-se marrom, pois, vale mais o que eles, do movimento, consideram, o que não se diferencia muito da satisfação que sentem estes mesmos ortodoxos pelo posto que Condoleezza Rice ocupa, sobrepondo a melanina às ações e discursos da Chefe de Estado.


Sim, Obama é marrom. Porque em nenhum momento de sua campanha trouxe, da devida maneira, o discurso em favor de negros e negras estadunidenses, em nenhum momento citou de maneira contundente referências do movimento negro, preferiu a pose de bom moço, negando-se, como se não existisse o conflito, como se, pacificamente, estivesse resolvida a questão racial pelo simples fato de dizer-se, abertamente, marrom. Creio que o Obama, para chegar a tão pobre conclusão deve ter-se olhado no espelho, num dia revelador, e por se ver menos preto que o pai (preto como betume), menos claro que a mãe (branca como a neve), convenceu-se: “Eu sou marrom.” O problema é que ele levou o espelho para o palanque. E a fundamental diferença, que, assim parece, de nada serviu ao presidente marrom, é que a corajosa atitude de seus pais, assumindo um relacionamento, ultrapassando as barreiras da pele, numa época complicada, em que até bebedouros eram instrumento de racismo, foi, inegavelmente, uma atitude revolucionária. Revolução esta que o Obama tem em mãos, mas despreza, preferindo um tom mais leve.

Há quem diga que ter-se declarado marrom é, talvez, uma jogada política, uma forma de chegar a todos sem partir para o embate como um desequilibrado, como se levasse em conta o temor de Sartre ao afirmar do perigo de um racismo às avessas. Honestamente, não valido o medo do Sartre e descreio completamente dessa teoriazinha da conspiração. A declaração aparentemente apaziguadora do Obama, quase “Lula Paz e Amor”, como se pretendesse mostrar que ele não está ali para acirrar ainda mais o conflito racial em seu país, prejudica mais do que auxilia, já que serve apenas para manter esta realidade no mesmo patamar, pois não revitaliza, nos negros estadunidenses, o sentimento de luta e afirmação tão bem exercidos por inúmeros expoentes das décadas de 60 e 70 do século passado. Pois bem, dirão que isso fora necessário apenas no século passado, as circunstâncias atuais são outras. Sim, as circunstâncias são outras, mas é fato que o convívio entre brancos e negros nos Estados Unidos permanece estagnado, e não é por acaso, nem mesmo diferente do restante do mundo, que a injusta distribuição de renda ou mesmo uma crise financeira global afeta, diretamente, a vida de negros e negras estadunidenses.


Muito diferente do que acontece aqui, onde há uma nítida gama de tonalidades de melanina, trazida à luz por Gilberto Freyre, a questão racial nos Estados Unidos não se estabelece por sutilezas e falsa moral, muito menos está incorporado na cultura deles o nosso cultural racismo velado. Lá é de um extremo a outro, ou é negro ou é branco (fora isso, vêm os latinos, o que já é adversário mais recente e entra, decerto, em outro contexto). Este conflito sempre explícito aos olhos do universo jamais sofreu grandes alterações, pois, desde sempre houve uma separação das cores, que vai desde localizações até classes sociais. Fala-se em bairros negros, em classe média negra... assim também ocorrendo com os brancos.

A medíocre declaração de Obama serve de reflexo para sabermos a quantas anda o estado atual de auto-afirmação racial de seu país, serve para vermos o quão a negação de si mesmos por parte dos negros deixa de ser uma negação velada e torna-se, cada vez mais, uma explícita derrota, que se dá em todos os aspectos, da estética à economia, sobrando a caricatura de negros assumidos para os emergentes milionários negros, oriundos do RAP, principalmente, que exploram e desmoralizam – ora, ora – outros negros que não tiveram a mesma sorte nem talento de cantar a realidade do gueto, vivendo em mansões, montados em seus carros conversíveis, com a boca cheia de dentes de ouro.

Enquanto no Brasil, o ator Milton Gonçalves sofre perseguição por parte do movimento negro por interpretar, em horário nobre, um deputado corrupto – como se para roubar dinheiro público fosse necessário medir a melanina –, não ouvi um estrondo sequer por parte desse mesmo movimento inquirindo, condenando Obama, considerando-o, naturalmente, um covarde porque não assume sua cor, não assume sua raça, fica em cima do muro, nem lá nem cá, prefere ser assim, marrom. Como assim?

terça-feira, 28 de outubro de 2008

CONTRA A GOROROBA, FAÇAM-ME UMA GARAPA!


Quando o Gilberto Gil pensou na Geléia Geral – bem antes dessa fala calma e sem lógica, apenas melódica, dos discursos e entrevistas dos últimos anos – em nada tinha a ver com a grande bagunça que são as alianças partidárias em nosso país. Naquela época, a política de Gil eram cabriolas e cambalhotas sobre gravatas e paletós. E uma coisa é certa: quem ainda engatinha, obviamente, não fica em pé. A baderna partidária que vivemos serve de falsa auto-afirmação de que somos sim um país democrático, serve apenas para legitimarmos a tamanha confusão sem cabimentos nem critérios, abrindo brechas profundas para a falta de escrúpulos e consistência partidário-ideológica, pois, nessa linha de Democracia tão proferida pelos deformadores de opinião legitima-se quem um dia é oposição e numa determinada circunstância, nitidamente interesseira, torna-se situação, tal fosse essa promiscuidade um pequeno exemplar dos supostos primeiros passos de nossa vida democrática. A verdade é que ainda ralamos os joelhos no chão.


Faça-se um resumo do que gerou o resultado das Eleições Municipais deste ano: No Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PMDB) venceu – apoiado por Lula e pelo DEM que faz oposição ao Governo Federal no Congresso – o candidato Fernando Gabeira (PV) – ex-PT, que teve o apoio dos artistas e que no Congresso sabe que seu partido é aliado do Governo Federal; Em São Paulo, Kassab (DEM) – que rompeu com o PSDB, contou com o apoio, no 2º turno, do mesmo PSDB – derrotou, humilhou Marta Suplicy (PT); Em Belo Horizonte, o mesmo PSDB, digamos, mais flexível, foi o fundamental aliado de Márcio Lacerda (PT) para derrotar Leonardo Quintão (PMDB), que sabe, como todos sabem, que seu partido é base do Governo Federal; Em Salvador, João Henrique (PMDB) – abraçado a Lula, de mãos dadas com ACM Neto (DEM), que é oposição ao Governo Federal – apagou a estrela de Pinheiro (PT) – de mãos dadas com Lula e agarrado a Imbassahy (PSDB) e Raimundo Varella (PRB), no 2º turno (este último esteve com ACM Neto no 1º turno, mas debandou contrariamente na 2ª fase das Eleições). Sem falar nos pequeninos repartidos partidos – PP, PR, PSL, PHS, PSDC, PMN, PT do B, PTC, PPS, etc. – que vão de uma ponta a outra, buscando a melhor sombra para sobreviver.


É a isto também que os Alexandres Garcias, os Ricardos Boechats, os Mários Kértezs e as Mirians Leitões chamam de Democracia. Mais que isso, imbecilmente, estes deformadores de opinião comemoram a cada Eleição esta farsa, como se a farra e repartição infindável do pensamento partidário no Brasil fosse um grande avanço para nossa sociedade, um grande avanço na construção democrática do país.

É preciso paciência, há tempos ansiamos por um regime democrático duradouro, pois o Brasil ainda é novo nesse negócio de Democracia, recomeçamos outro dia, pois foi outro dia que trouxemos Fernando Collor ao poder – um exemplo nítido do quão despreparados estávamos. Antes disso, vivemos décadas de Ditadura, tendo experimentado ligeiro espaço de tempo democrático (Jânio, JK, Jango), sem contar com o poder estabelecido, anos infinitos antes, por Getúlio Vargas, ora mandando – Estado Novo –, ora dialogando – curto período democrático, que culminou no suicídio do líder. Fora isso, o que vem antes do Pai dos Pobres não tem nem cheiro de Democracia.

Não estou aqui dizendo que não vivemos nem que não devemos viver democraticamente. Pelo contrário, estou corrigindo, deixando claro que não é este fogaréu de partidos que vai fortalecer nossa Democracia. Muito menos essas alianças descabidas são o melhor exemplo de se viver verdadeiramente uma vida democrática. Decerto, esse fogaréu confunde, ameaça sensivelmente a tomada de idéias e práticas viáveis, pois a partir do ponto em que não se estabelecem majoritárias correntes de pensamento político, perde-se a chance de resolvermos efetivamente os problemas da vida sócio-econômica, fazendo com que essa enxurrada de partidos não passe de um grande conglomerado de pequenos cartéis, fontes burocráticas de interesses exclusivamente financeiros.


Ao sugerir este estreitamento não estou de forma alguma justificando a manutenção, ainda teimosa, de uma visão maniqueísta partidária, como se tivéssemos que, burramente, outra vez, dividir o país em meros comunistas de um lado, expressivos capitalistas do outro. O século passado passou, mas restam ainda teimosos cadáveres que às vezes alteram voz e discurso em minúsculos soviéticos palanques. Creio que é preciso achar o equilíbrio necessário, é imprescindível que os posicionamentos dos partidos tomem tendência real e transparente, ou melhor, é fundamental a derrubada de determinados partidinhos e que haja o crescimento e amadurecimento estrutural e espiritual de partidos verdadeiramente influentes.


Vejo o exemplo dos Estados Unidos. Não por acaso o amadurecimento explícito da Democracia Estadunidense, pois lá, de verdade, existem apenas dois partidos: Democratas e Republicanos. E não são opostos, absolutamente opostos, possuem pontos de vista diferentes. Nessa hora entram outros deformadores de opinião, foices e martelos em punho, para negar a existência de Democracia nos Estados Unidos. Além de ser uma opinião baseada no ranço da inesquecível Cortina de Ferro, há uma visão deturpada sobre o assunto, pois lá, num país que jamais viveu anos de chumbo, é que as definições ideológicas, podendo não ser as mais eficientes, são, em absoluto, concretas e bem estabelecidas. Não é mesmo por acaso o fervor e participação ativa de toda a sociedade estadunidense ainda nas prévias das Eleições presidenciais.

Mesmo sem saúde e fisiologia adequada, eu fico com as cabriolas e as cambalhotas, pois, num país onde Frank Aguiar é deputado federal, Léo Kret é vereador(a) e Netinho de Paula é comunista, melhor a bem intencionada Geléia Geral do Gil do que esta existência frágil da gororoba, que, no Brasil, insistimos chamar – de boca cheia – Democracia.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

TÁ NA CHUVA É PRA SE MOLHAR. TÁ NA SOMBRA É PRA DEFINHAR.



Curto e grosso, saibam: o último comunista petista soteropolitano morreu entalado com acarajé e coca-cola. Sobra no Partido dos Trabalhadores uma gente que se entope de acarajé e coca-cola, mas não morre, porque lá quem outrora andava à esquerda, hoje trafega no caminho do meio. E o que era pedra deixou de ser. Virou PSDB. Eis a postura explícita de uma mudança que já se desenha há algum tempo: PT e PSDB alinhados num mesmo patamar nas eleições da Prefeitura de Salvador, no decisivo 2º turno. Imbassahy apóia Pinheiro que está com o presidente Lula que tem uma escancarada e estratégica simpatia por João Henrique. Não, isso aqui não é uma conspiração aos moldes fantasiosos de Hiltons e afins. Não são todos farinha do mesmo saco. O PMDB, em si, engloba os mais variados tipos de farinha num mesmo saco, pois onde se engole Garotinho, se degusta Pedro Simon. PT e PSDB, aos poucos, se entrelaçam e vêm demonstrando, sem rodeios, que as diferenças são superficiais.

E quanto ao PC do B? Vai na sombra. Na sombra do PT. Fora isso, PSOL e PSTU seguem, raivosos e estressados, sem rumo, sem sombra, sem água fresca. Porque, de fato, esta aproximação, em Salvador, é uma reaproximação: Lídice da Mata, quando tucana, contou com a ajuda do PT para derrotar ACM em 1992; há quatro anos, João Henrique no 2º turno com César Borges, PT e PSDB, cada um no seu quadrado, apoiaram fervorosamente o atual prefeito; e no Governo Estadual a base de Wagner, na Assembléia Legislativa, é o PSDB.

E no meio desse laço fraterno – outrora tímido, hoje descarado – que vem se construindo na Bahia, o PC do B, em Salvador, permanece no papel de figurante, figurinha repetida e descartável, mera peça de enfeite que transita entre o progressismo paliativo de um PT e a tendência caricatural e panfletária de seu Estatuto baseado em comunas, foices e martelos.

(O mais claro exemplo dessa postura apagada dos vermelhos barbudos foi a decisão infame de desfazer a candidatura de Olívia Santana em detrimento da candidatura imposta pelo PT, com Pinheiro à frente. Muito pior, porque o PC do B nem força teve para deixar a “negona” ali, na espreita, como vice. Empurraram-na longe, puxando Lídice da Mata para a vice-candidatura).

Deveria sim caber ao PC do B soteropolitano uma renovação em sua postura, pasmem, uma revolucionária transformação, uma verdadeira tomada de atitude, partir pra cima, fazer jus, na medida certa, ao seu discurso teórico, sair da sombra de um lugar que não lhe cabe mais, principalmente em Salvador, onde a tendência ao ostracismo vem sendo maior, pois, nos últimos anos, o passo mais largo que o Partido deu foi a vice-candidatura, em 2004, do nulo Deputado Javier Alfaya. E, independente de seus 2.385%, Olívia Santana, partindo para uma candidatura, ainda que simbólica, tem muito mais força e melanina influente do que um simpático e inexpressivo espanhol radicado no Brasil.

Não creio que um retrocesso seja o caminho – aliar-se com gente de outro século, os tais Hiltons e Heloísas Helenas –, mas, perante a passividade e covardia do PC do B soteropolitano, é invejável a postura soviética desses antepassados. Pois acredito sim que é muito mais lucrativo e politicamente viável ter independência ainda que pouco visível do que viver da invisibilidade absoluta de ser eternamente um simples partido coligado de Esquerda – sabe-se que essa postura, de ficar no rebote, à espera de cargos, como um aparente mero partido coligado é condizente a quem impõe alguma influência, o caso do PMDB: Gedel apóia João Henrique, mas é base do Governo Lula que apóia Pinheiro.

Amigos e amigas, o PC do B, na Bahia, é mosca morta. Não cheira porque só fede a mofo. Prefere ser sede de jovens socialistas descontextualizados ou mesmo se orgulha de ter em seu quadro parlamentar uma deputada temperamental e mal resolvida, um deputado vaidoso cheio de manias e mordomias, como se pela postura moderninha de ambos isso significasse alguma influência ou enriquecimento político para o Partido em nosso Estado. E é a capital o estopim da inutilidade política do PC do B, que, por conta desse meio-termo que insiste sustentar, vem sendo desacreditado até mesmo pelos sindicatos que sempre foram sua base, pois nem Oliveira (carro-chefe no Sindicato dos Comerciários) nem Everaldo Augusto (homem forte do Sindicato dos Bancários) se reelegeram. Apenas Olívia e Aladilce saíram ilesas: dois pontinhos vermelhos na casa do povo.

O rompimento do PC do B com o PT em outra capitais aconteceu, sim, mas até então não serviu de exemplo para os militantes desta província. Vê-se: Manuela saiu candidata em Porto Alegre; Jandira Feghali, no Rio, desprezou Molon; Jô Moraes, em Belo Horizonte, viu de longe o namoro entre PT e PSDB; Ricardo Gomyde, em Curitiba; e até em Macapá, o PC do B mostrou-se independente. Mas em Salvador a sombra, obviamente, não viu sol.

Soube que o chato e metafórico José Saramago disse, cabisbaixo – como parece sempre andar – e desiludido, que o comunismo hoje é um estado de espírito. Oralmente o português proferiu estas palavras, e imagino que se as tivesse escrito, decerto, criaria uma longa e irritante metáfora, que chamariam de romance, quiçá, viraria até filme. Acontece que Saramago não é baiano, porque se ele cá estivesse, se fosse filho da Cidade da Bahia, nem alma nem espírito veria para construir a sua melhor frase. Veria apenas sombra.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

A FUNÇÃO SOCIAL DA HOMOSSEXUALIDADE.


Reconheço sim na minha cara robusta um tanto de pessimismo aparentemente assustador. Na minha cara, porém, não está meu coração, sem modéstia, singelo e cheio de esperança. E me dei conta de que devo desde já transparecer na cara o coração quando passou por minha vida, dia desses, não um rio, mas um arco-íris. Vi de perto, comovido, em pleno centro da cidade, a Parada do Orgulho Gay. A comoção, fique claro, não foi a de quem sentiu-se despertado por um súbito impulso homossexual e muito menos por achar bonito o beijo entre iguais em gênero – até porque considero o beijo mais obsceno do que a relação sexual, seja entre heterossexuais, seja entre homossexuais.

Ah, a comoção, o deslumbramento, tudo mais nítido e cheio de vida despertados em mim, levando a tímidas lágrimas, porque vi, nas entrelinhas da festa, um pedaço significativo das positivas mudanças porque o mundo passa. A ascensão da liberdade homossexual, a meu ver, é o contraponto moral mais eficiente nos dias atuais. É nesse simples ato livre, que ainda tanto afeta doentios heterossexuais, que está uma das chaves da grande mudança interior dos seres humanos. Digo isso porque a partir da homossexualidade aspectos sociais, econômicos, filosóficos e morais já vêm passando e hão de passar cada vez mais por alterações que dão à vida das pessoas um novo caráter, fazendo do corpo mero artífice sexual, tomando como essência a alma, em seu mais amplo e integral conceito de humanidade.

Decerto é exagerado – embora para mim qualquer exagero é sempre esteticamente tocante – dizer que a homossexualidade vai salvar o mundo. Convenhamos que não salve por si só, mas o ponto fundamental da salvação está sim nos gays, lésbicas e afins. Tomo como exemplo a abrangente afetação moral que essas pessoas causam nos supostos normais, a diversidade e liberdade de escolha ou simplesmente a liberdade de ser o que é, já vem sendo exemplo para as novas gerações, garotinhos e garotinhas, ainda em tenra idade, não se reprimem em seus atos – nos meninos, atos mais delicados; nas meninas, robustos atos – e nem são tão reprimidos como em outras épocas outros meninos e meninas sofriam. A vantagem de ser o que é torna, sem dúvida, a convivência familiar mais transparente, o garotinho já não se sente culpado pelo gosto que tem tocar outro garotinho, a menina se sente à vontade a sentir mais além a pele da sua amiga, pois já não é mais o tempo das trágicas histórias do Nelson Rodrigues, a hipocrisia na vida familiar, a duras penas, é claro, vem sendo quebrada, gradativamente, graças à homossexualidade.

Outra contribuição, ainda dentro do contexto familiar, está na morte do homem machista, no nascimento da mulher agressiva. No cemitério da vida moral é onde os machistas se encontram hoje porque o aparecimento crescente e sem freios do homossexual permite ao homem experimentar sensações reprimidas por séculos infindáveis, permite que o homem chore, esperneie, olhe o mundo com mais doçura, influenciando, inegavelmente, os homens heterossexuais, influência esta que é de grande importância principalmente na vida amorosa e familiar, pois no lugar do macho vê-se, aos montes, homens delicados, donos-de-casa, mais amantes e menos agressivos com suas companheiras, buscando em si mesmos o prazer de saber dar prazer à mulher amada. A geração aos turbilhões de mulheres agressivas tem trazido contribuições também fundamentais, pois essa agressividade é o passo determinante na conquista da Razão por parte das mulheres, pois hoje, estas enxergam determinados aspectos na vida social com mais frieza, mais cautela, sem o comum desespero feminino, fazendo, assim, o equilíbrio essencial e que vem servindo de exemplo e influenciando as novíssimas e ilimitadas mulheres heterossexuais.

O aspecto sócio-econômico é o que já vem trazendo bons frutos, pois socialmente estabelecida a relação homossexual, este tipo de envolvimento é o freio que faltava à Humanidade na sua densidade demográfica, nesse crescimento populacional desequilibrado, uma vez que a geração de uma nova vida entre pares de gênero igual é biologicamente impossível, tornando possível, à medida em que o tempo passa e a homossexualidade torne-se absolutamente abrangente, uma qualidade de vida ideal, pois quanto menos pessoas melhor se pensa e se pratica as formas de distribuição social de recursos materiais. Mas é óbvio que para chegarmos ao lugar que Thomas Moore inventou (a difamada Utopia) é necessário muito mais do que já vem sendo feito, é preciso sim uma campanha maciça – e falo isso pensando em vias práticas de execução – a favor da legitimação e incentivo familiar e social à homossexualidade, na busca inovadora de influenciar seus filhos e filhas ao gosto homossexual, revolucionando costumes – dar boneca a meninos, dar bolas de gude a meninas – e quebrando as tendências ditas normais – perguntar ao menino quem é o namoradinho dele na escola etc. Essa campanha além de trazer, embora a longuíssimo prazo, os benefícios democráticos da distribuição material, imprime nas novas gerações atitudes mais dóceis nos homens, ações mais práticas e inteligentes nas mulheres.

Anexo à campanha que proponho, seria imprescindível partir do governo federal um incentivo, que pode acontecer desde já, aos homossexuais adultos, à adoção de crianças, matando dois coelhos numa só cajadada: menos crianças nos orfanatos (o que significa mais amor entre seres humanos) e naturalmente menos gente gerada no mundo (porque a partir desse incentivo, nenhum dos parceiros ou parceiras vai se submeter a fazer um filho fora da relação, uma vez que terá o direito, por lei, de adotar uma criança).

A separação sexo x amor está melhor configurada numa relação homossexual, nela as barreiras impostas na dura e repressora relação heterossexual não se fazem presentes, pois a liberdade, e porque não dizer, a libertinagem do corpo, do impulso sexual ultrapassa limites que vão aflorar numa visão mais voltada à essência humana, distanciando-se mais e mais da hipocrisia tão em voga entre heterossexuais quando dizem sentir prazer e desejo apenas entre si mesmos. O despudor corpóreo trazido pela homossexualidade e sua utilização prioritariamente para a satisfação sexual faz das sensações, fundamentais à renovação do espírito, uma eterna novidade. Essa separação, para muitos, drástica, é a mais simbólica e fundamental contribuição da ascensão homossexual, porque se identifica mais claramente nessa revolução moral o conteúdo humano, a demonstração explícita de se ver as pessoas como pessoas, amando-as como pessoas, como almas humanas em si, desprezando, ainda que implícito, classificações, dando ao gênero – antes protagonista – o mero papel de figurante nesse novo e especial contexto da Humanidade.

A mudança já teria dado passos muito mais largos se não fossem, sabe-se, as Instituições que insistem introduzir nas pessoas a repulsa a homossexuais, e essa repulsa propagada ora aparece de cara aberta nas igrejas, centros espiritualistas, mesas de bar e Forças Armadas, ora camufla-se nas Jurisdições e parlamentos políticos. Em resposta a estes ataques ainda constantes, a reação homossexual de maior relevância infelizmente é a de menor eficiência, e talvez a que mais prejudica o natural andamento da transformação em foco. Porque se fecha em guetos, criam grifes, bares, departamentos, revistas e até igrejas, a homossexualidade estagna-se como folclore, e pior do que isso, configura sobre si mesma perante a sociedade a insistente e prejudicial imagem de “diferente”, “extravagante”, “anormal”. O que seria uma defesa ganha a pólvora de fogo-amigo. Claro que deve se separar o joio do trigo, a formação de grupos em defesa dos homossexuais é fundamental, pois preza pela defesa, pela integridade de, antes de tudo, seres humanos. Nesse ponto sim é importante a classificação, embora não seja o suficiente para legitimar os chiliques verborrágicos e provocações piadísticas e pouco relevantes de Luis Mott quando diz que quase todo mundo na História foi gay, desde São Sebastião (que morreu flechado com um pau nas costas) até um Zumbi dos Palmares (talvez porque fora esquartejado e colocado à mostra com o próprio pênis na boca).

Ainda que intercalado a ações equivocadas e ligeiros vazios de conteúdo, vê-se na configuração do ser humano do século XXI o retorno do grande crescimento de nossas almas, numa analogia, aqui, lógica, ao período helenístico, onde a homossexualidade tinha função social efetiva, onde mestres e discípulos – homens – se envolviam, por inteiro, no aprendizado filosófico. A analogia cabe, mas sofre a diferença fundamental quando se percebe que é neste século onde estão se configurando homens e – agora sim – mulheres que são, antes, seres vivos, humanos, demasiado humanos, que pensam e podem, à medida que os passos se tornam largos, à medida que a repulsa seja banida, exercer ostensivamente sua plena e delirante liberdade, e porque não dizer, digo outra vez, sua plena e delirante libertinagem. 

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

ERRARAM DE JOÃO!


Quando meu médico recomendou-me pequenas caminhadas, hesitei um pouco por conta do ato de andar que é coisa que muito detesto, prefiro carro, se o tivesse, até pegar ônibus, ou quando me permito um luxo só, tomo um táxi. Há males, eu já disse, que vêm para o bem. E nesse caso falo nem tanto pelo benefício à minha saúde, mas, mais válido porque, numa dessas caminhadas minúsculas noturnas, pelas bandas do Campo Grande, vi, de perto, a humilhação de umas tantas pessoas enfileiradas à porta do Teatro Castro Alves, arreadas no chão, aguardando, para a manhã seguinte, adquirirem um mísero ingresso para o show de João Gilberto.


Um porém nisso tudo é que de nada serve dizer aqui que “tem gosto para tudo”, porque, neste caso, muito específico, não se trata de gosto. Se trata de qualquer outra coisa, menos de gosto. Sei bem que entre as tantas pessoas que solicitamente se permitiram tamanha humilhação são pouquíssimas as que perdem horas intermináveis escutando músicas na voz do João Gilberto, mínimas as que possuem pôster do João Gilberto na parede do quarto, ínfimas as que entendem porque João Gilberto é o ícone da Bossa Nova. Então, para que tanta humilhação? Talvez a psicanálise, a psicologia social, ou o materialismo histórico possam explicar, a seu modo, tal fenômeno. Arrisco que alguns tantos universitários universitários estavam ali para preencher o currículo com matéria extra-curricular: Show de João Gilberto.


Mas a mim não cabe explicar o que leva tanta gente a se esbofetear, acampar na porta do teatro, gastar valores abomináveis para apreciarem o que verdadeiramente não apreciam, contemplar o que não contemplam, ouvir o que mal podem escutar. Sei apenas que a grande sacada pertence ao próprio João Gilberto, fazendo-se de autista, inventando manias, criando casos, não comparecendo a compromissos, tornando-se por isso reverenciado por todos, sem nem saberem porque reverenciam.

Erraram de João. Entre as tantas personalidades que de forma direta ou indireta influenciaram ou foram moldando o que veio a se chamar de Bossa Nova, o verdadeiro e sempre renovado ícone deste gênero musical foi, sem dúvidas, João Donato. Não desmereço o talento e a importância do João Gilberto. Apenas contesto que seja ele o centro das atenções, o ícone, uma vez que o mesmo não criou nada, apenas encorpou de maneira mais condensada o que Roberto Menescal, Carlos Lira, Tom Jobim, Jonny Alf, Tamba Trio, entre outros já faziam a um modo jazzístico muito peculiar. E só encorpou porque no meio do caminho havia João Donato.


A batida do violão é fruto do samba que foi traduzido, na influência do jazz, por Carlos Lira; a letra descompromissada, alienada, amorosa e coloquial – que é uma revolução na literatura musical brasileira – começa também com Carlos Lira, e ganha maior consistência na poesia melódica do Vinícius de Moraes; o toque da bateria característico – na Tailândia se reconhece a batida de Bossa Nova – é fruto, pasmem, da involuntária criação musical de um baterista, no estúdio, gravando disco do João Gilberto; e mesmo o modo baixinho de se canta – isso sim uma invenção atribuída ao tal ícone – é fruto do incômodo de alguns vizinhos dos prédios cariocas exigindo silêncio nas delirantes madrugadas daqueles jovens, entre violões, que para não causarem maiores desentendimentos foram forçados a cantar baixinho.

Tudo isso antes do João Gilberto, tudo isso na influência significativa de João Donato, através de um instrumento nem um pouco familiar à Bossa Nova: um acordeom. Antes do piano, João Donato tocava acordeom, só que de maneira diferenciada, nem regional nem experimental tornando, a partir daí, o que era jazz numa nova linguagem, a mescla exata que veio dar em tudo o que Roberto Menescal, Carlos Lira, Tom Jobim, Jonny Alf, Tamba Trio e João Gilberto passaram a criar.

De forma espontânea, sem nem saber como, João Donato é quem dá o mote à Bossa Nova, é quem verdadeiramente abrasileira os músicos tão bem encaminhados no jazz, à base de Dick Farney, Cole Poter, Frank Sinatra e Chat Baker. É João Donato quem possui o tal suingue inconfundível, a síntese precisa do que veio a se tornar um gênero musical universal. E tudo sem grandes pretensões a ponto de o próprio João Donato só ter se dado conta de sua peculiaridade e importância muitos anos depois. Sem falar que ainda espontaneamente o próprio João Donato troca o acordeom pelo piano, apenas por considerar o primeiro um tanto incômodo de manusear.

João Gilberto declarou: “Eu faço samba.” Acredito. Quem faz Bossa Nova, quem inventa tudo isso que vem sofrendo influência e assédio até de quem não conhece Bossa Nova é João Donato. É João Donato quem vai ensinar a João Gilberto a batida perfeita, entre ovos fritos ao som de Chat Baker e conversas demoradas do meio-fio de Copacabana à casa de Bené Nunes. É João Donato quem inverte a lógica e se reinventa até hoje, fazendo dessa Bossa constantemente nova, incorporando-a a variados ritmos – atitude bem diferente de João Gilberto, que há séculos se repete, tocando as mesmas músicas, as mesmas batidas, causando em Carlos Lira o vômito de declarar: “João Gilberto parou no tempo.”


Anos atrás, João Donato esteve em Salvador fazendo um pequeno show no Centro Histórico, para uma platéia sem grandes celebridades, em pleno domingo, meio-dia. O ingresso? Uma lata de leite Ninho, tudo revertido para instituições de caridade. Com R$ 180,00 é possível comprar 25 latas de leite Ninho. Com R$ 180,00 é possível: pagar para suportar o atraso de quase duas horas do show de João Gilberto; contribuir para o seu adiposo cachê; e encher ainda mais o cofre do Banco Itaú, que foi quem trouxe João Gilberto de volta aos palcos de Nova York, São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. A simplicidade de um João Donato detonou a existência autista, mítica e mercantilista de um João Gilberto.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

OLÍVIA É 2.385% NEGRA.



2.385% é um valor percentual que jamais imaginei que pudesse existir. Nem faço idéia do que venha a ser 2.385%. Ultimamente levo sustos constantes, sofro pesadelos intermináveis, com números gigantes, cifrões agressivos, valores descabidos – embora a recomendação de meu médico seja a de não me permitir chateações nem emoções fortes. Mas, doutor, é mais forte que eu. E veio impresso estampado no jornal: 2.385%. A quem se refere esse número? Pasme quem ainda inocentemente se pasma: Olívia Santana (a “negona”, a que é “a cara da cidade”, a afro-descendente, a feminista, a filha de lavadeira etc etc). 2.385% é o valor percentual do crescimento, entre 2004 e 2008, de bens declarados pela vereadora ao TRE. Simples assim: em 2004, Olívia declarou R$ 5 mil; em 2008, vergonhosos R$ 125 mil. É o comunismo em processo evolutivo. Rosa Luxemburgo, retorcida na cova, grita de lá: “Isso é acúmulo de capital”.


Pois bem, haverá quem se indigne e me pergunte: “Por que ‘vergonhosos R$ 125 mil’? E a partir daí já sei, sou obrigado a sofrer o antigo discurso comunista de que os “vermelhos” defendem a distribuição de riqueza, não a distribuição de pobreza. Até aí concordo, é bem o meu ponto de vista, desde que efetivamente a riqueza gerada seja realmente distribuída. Mas considero esses R$ 125 mil vergonhosos sim porque em sua justificativa Olívia Santana diz ter conseguido economizar, fazer uma poupança de R$ 40 mil em quatro anos, diz ter conseguido um empréstimo grande, gigantesco, com duas pessoas amigas, fora uma parcela de R$ 20 mil junto ao Banco Real. São vergonhosos porque ao discurso dela não cabem 2.385%, no histórico dela não cabem as justificativas para crescer, de Atenas a Pequim, 2.385%.


Posso conceder crer que ela distribua, como comunista de carteirinha que é, esse valor entre os seus camaradas, e brinco de adivinhar comigo mesmo para saber com quem Olívia Santana anda distribuindo o acréscimo de 2.385%. Decerto uma parte disso vai para a empregada doméstica de sua casa – de lavadeira ela não precisa porque, óbvio, existe máquina de lavar roupa. Outro pedacinho dos 2.385% devem estar bem mal distribuídos entre a assessoria da vereadora – diz-se, à boca graúda, ser a assessoria de menor remuneração na Câmara. Uma parte, talvez, ela conceda às Instituições Raciais que ela defende – nem só de idéias e raça vive o homem. Mas ainda assim é pouco para justificar 2.385%.


(A inflação nunca chegará a 2.385%; o aumento salarial, em crescimento, desde Getúlio Vargas, não chega nem perto de 2.385%; nunca um candidato, em comparação à eleição passada, terá um acréscimo de votos de 2.385%; o número de analfabetos, em cinqüenta anos, não diminuiu 2.385%; e o Brasil não sabe quando sorrirá 2.385% de crescimento do seu PIB. Valor assim, até o presente momento, cabe apenas aos adiposos bens da vereadora Olívia Santana).


Claro que a “negona” não foi a única na Câmara a passar pela situação chata de ver seu patrimônio crescer metros de cifras. À frente dela, em valores absolutos, estão Beto Gaban, Gilberto José, Silvoney Sales, Paulo Magalhães Júnior e Paulo Câmara. Mas nenhum, ninguém, entre os vereadores e vereadoras, sofreu um acréscimo tão significativo quanto Olívia Santana. Mas faça-se justiça: ela é mulher, nasceu na periferia, passou por dificuldades, filha de lavadeira, é preta, é comunista e é feminista, ou seja, possui justificativa suficiente para justificar 2.385%. Por sinal, sugiro que se coloque tal crescimento no livro dos recordes, pois além de estimular outros parlamentares a encherem bem a declaração de seus bens, tentando superar a marca da vereadora, tê-la no livro dos recordes, com este recorde, seria ótimo para o Partido (diminuiria a distância talvez com o povo), seria bom para o movimento negro (de forma adequada a cota estaria estabelecida também no livro dos recordes) e bom também para a bandeira feminista (mais uma mulher a vencer o Guiness).


Não estou dizendo aqui que a vereadora não tem direito a conforto, casa própria, estabilidade e roupa lavada. Isso desejo, verdadeiramente, para todas as pessoas, sem distinção de melanina. Quero saber apenas de onde saiu o acréscimo de 2.385%. Ou mais que isso, saber se há ou não há contradição entre o discurso feroz de Olívia Santana e a declaração de bens recheados de Olívia Santana. Pois saibam: fosse a ingenuidade ainda característica minha, juro que hoje estaria tenso esperando a forma como a sociedade, o Partido e as Instituições Negras reagiram. Mas são outros tempos, justificativas socialistas e raciais existem de sobra para legitimar um percentual tão abusivo.


Quando Olívia Santana chega ao seu bairro do coração – Engenho Velho da Federação –, embora ela não esteja no coração do bairro, ninguém, nem eu, iria imaginar que aquela nobre vereadora, guiada por seu motorista, no velho Fiat Uno que ela sempre fez questão de não trocar, passaria, em quatro anos, por um acréscimo de 2.385%. Ela bem sabe fazer a coisa certa, pois não cairia bem para uma parlamentar comunista, militante negra e feminista fervorosa desfilar em carro de última geração, por isso, deve-se, sim, transformar dinheiro em bens menos visíveis, bem mais lucrativos. A discrição de seus bens cai por terra num olhar mais atento, detalhado, feminino, quando se percebe a marca de sua bolsa, a marca de seus sapatos.


(Estupefata com um valor percentual que nem a pobre coitada acredita existir, dona Fulana não sei de onde, me disse, cheia de si, cheia de sabedoria: “É uma falta de absurdo!” )


E faço um singelo, mas, ao menos, simbólico pedido à vereadora: por favor, querida, ao pisar no chão da periferia – lugar comum de seu mandato – pise-o com cuidado, carinho, se possível, como quem desliza macio sobre ovos, para não machucar com seu solado de 2.385% de crescimento de bens em quatro anos, o suado asfalto por onde passam e seguem adiante, séculos adentro, sem percentagem alguma que lhes favoreça, as lavadeiras, as filhas das lavadeiras, os negros e as negras pobres da cidade do São Salvador.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

A UNE REUNE... 36 MILHÕES DE REAIS. PRA QUÊ?


Porque venho passando por terríveis problemas de saúde, meu médico recomendou que eu ficasse distante dos acontecimentos, distante da leitura e também distante do ato de escrever. Por alguns meses permiti-me dar credibilidade às estranhas indicações de meu médico. Mas existem males que nos aliviam, que nos fazem bem. Resolvi voltar a escrever. Embora não tenha sido uma atitude voluntária, não busquei assunto algum, o assunto me persegue há algumas semanas. E o que me assusta é que determinadas coisas que acontecem nesse país não assustam mais.


Percebam: O Governo Federal indenizará em até R$ 36.000.000,00 a UNE, pelo incêndio de 1964 e pela posterior demolição em 1980. De propósito deixei escritos os ilimitados zeros do recheado valor. Pois bem, aí está porque já não posso mais cuidar de minha saúde em paz. Eu quero que me expliquem, logicamente, de que forma se equipara o estrago feito à instituição e o valor que se estabelece pagar. Parece coisa de propaganda de TV: “Não tem preço.” Pois tem sim. E o preço é altíssimo. Tem valor de escolas, postos de saúde, valor de investimento em segurança pública, em habitação e esportes. Mas o presidente Lula preferiu reparar o erro cometido pelo Estado autoritário brasileiro a esta importante instituição – não houve até aqui um nanico espírito de porco a manifestar a ressalva de que o Estado brasileiro à época era comandado por uma Ditadura militar, naturalmente, sem a participação do povo, dos partidos e entidades sociais.


Ironia tem hora certa e lugar. Quando digo que a instituição é importante estou falando sério. O histórico da UNE deve mesmo ser respeitado. Mas não há histórico queimado de instituição alguma que valha 36 milhões de reais. Um abuso. E mais do que isso, um descompromisso da própria UNE ao aceitar – sorriso largo no rosto – este valor. O mais ético e condizente com sua luta, seria a rejeição de tal valor, exigir que este valor se reverta, minimamente, em projetos de educação, em prol dos próprios estudantes. Mas por debaixo dos panos do Planalto, quando se é “situação”, não existe pecado, já se sabe, tudo é muito relativo.


A pergunta me atordoa: pra que a UNE quer 36 milhões de reais? De que forma os seus membros, de escalões menores, poderão acompanhar a utilização desse dinheiro na própria instituição? O que se diz é que este prêmio da Megasena será utilizado para a reconstrução da sede carioca, e o projeto será desenhado – se ainda houver tempo e vida para isso – por Oscar Niemeyer. Sabe-se que este valor de indenização equivale a seis vezes o valor avaliado do terreno, fora as frescuras que o arquiteto do século passado ainda insiste inventar, nem assim gastar-se-á o prêmio inteiro. Claro que, além disso, deve-se fazer compra de materiais, mas nada que chegue a torrar toda essa fortuna.


Então, eu sugiro que se faça das duas uma, ou as duas talvez: pode-se aproveitar o projeto do velho arquiteto e o caráter mais moderninho da UNE e criar anexo à sede um mini-shopping temático, claro – vendendo boinas, camisas com rosto de Che, Bob, Lenin e Chavez, chaveirinhos, lanchonetes –, pois além de estar dando oportunidade de emprego, criando mão-de-obra, a UNE terá em mãos um capital rotativo do qual não mais precisará da mão amiga do Governo: bom para o povo, ótimo para a UNE. A outra opção se dá em função do tamanho descrédito do Movimento perante os estudantes, por isso, para reparar esta desavença, creio que seria mais proveitoso e politicamente bem articulado se a UNE passasse a pagar uma ajuda de custo a todo estudante que a mesma convidasse a participar de passeatas, assembléias, motins e piquetes. Seria, sem dúvidas, militância garantida por mais tantas décadas e uma forma muito mais próxima de se efetivar uma política pública tal qual à do Governo Federal – um projeto com nome de efeito, “Bolsa-Estudante”, “Bolsa-Militante”, ou coisa parecida.


O impasse que vem me deixando angustiado nesses dias é não saber quem é mais inescrupuloso: o Governo de direita que abre concessões a empresários, privatiza órgãos federais e permite juros e taxas abusivas a Bancos? Ou o Governo de Esquerda que abre mão do dinheiro público para reparar um erro que a Democracia não cometeu, mas ainda assim o faz, como um aparato político, uma vez que um movimento a mais que não incomode as ações federais, haverá menor necessidade de retaliação? Neste segundo caso, para não parecer desleixo e desconsideração de um presidente com o histórico que o Lula tem, acho que poderia sim, deveria sim, ser concedido um valor simbólico de indenização, exatamente porque a o Estado democrático não tem nada com o incêndio nem com a demolição. Poderia ser tão simbólico – guardadas as devidas proporções – quanto o orçamento direcionado à saúde, educação e segurança, poderia ter sido esta indenização, e creio que deveria partir da própria UNE a sugestão, um paliativo entre tantos em vigor nesses dois mandatos de esquerda.


Quando Fernando Gabeira, ex-PT, atual PV, candidato a prefeito do Rio de Janeiro, declarou, depois do prêmio da Megasena aprovado, que a UNE não é mais a mesma, fiquei na dúvida se o que ele queria dizer é que a UNE, com esse dinheiro, poderá se estruturar a ponto de deixar o caráter estudantil e tornar-se profissional – com mini-shopping e “bolsa-militante” – ou a declaração soava como desilusão, ao constatar tristemente o fim de um tempo em que a bandeira azul vinha à frente e representava, sim, a classe estudantil brasileira. 

domingo, 30 de março de 2008

NEM TANTO TANQUE, TAMPOUCO PALANQUE.


Para a tristeza de uns tantos tontos por aí, eu não morri, nem desisti. E se não morri decidi matar as mulheres do século XXI, as mulheres independentes, auto-sustentáveis, essa espécie perniciosa que prolifera de uns tempos pra cá, miniaturas de Leila Diniz, recrutas frustradas de Marta Suplicy, imitações nefastas de Pagu, dessas que existem hoje, que negam o tanque, exigem palanque. Ora, sejamos sensatos, nem tanto tanque, tampouco palanque.

E Reich para entrar para a História perdeu horas infindáveis de sua vida ouvindo e aconselhando mulheres que já apresentavam os primeiros sintomas desta anomalia que é a independência, o fracassado teor auto-sustentável que essas racionais mulheres insistem sustentar. Gaiarsa, na mesma linha de Reich, se vendo desesperado com o desespero destas, assina embaixo soluções descabidas que vão desde sugestões de relacionamentos abertos até um adultério aqui ou ali de vez em quando. Tempo gasto a toa porque não foram capazes, nem ao menos tiveram coragem de admitir que a ascensão da mulher independente é a morte da mulher original.

Talvez essa frouxidão se dê pelo susto de ver umas poucas mulheres revoltadas queimando sutiãs em praça pública. Decerto, um rompimento. Agora, elas, as auto-sustentáveis, são obrigadas e se vêem atordoadas a arcar com as conseqüências de tal escolha. O que chamo de mulher original é a mulher que não existe mais – e tende mesmo a inexistir por um longo tempo, assim me parece –, as donas de casa, aquelas que cuidam do lar, dos filhos, dos imprescindíveis afazeres de casa. Essa, sim, morreu.

Temos visto surgir aos montes um bando irrequieto de mulheres trabalhando, pensando por si só, auto-sustentável ao ponto de passar meses e até anos sem se apaixonar. Mas nada é fruto do acaso, é fruto mesmo dessa nova realidade que se configura, porque a partir do momento em que a mulher tomou pra si o mínimo de questionamento sobre as coisas do mundo e sobre a sua própria existência e papel na vida social, ocorreu uma radical transformação que se revela na recente incapacidade de amar, porque simplesmente questionar e amar são territórios que não se tocam, e o primeiro ao suprimir o segundo, inevitavelmente traz à tona mulheres desconfiadas, avessas a relações que ultrapassem meses de duração, irritadas facilmente com qualquer ato demasiado doce ou demasiado grosseiro por parte do homem. É um olho aberto, o outro também.

O pior de tudo é que mais do que uma proliferação de mulheres que olham torto para dentro da cozinha, é a proliferação do ideal de mulher independente que afeta até mesmo mulheres que eram genuinamente originais. Fiquei estarrecido ao tomar um táxi dia desses e já dentro do carro olhei para o lado e vi que quem me conduzia era uma mulher. Não estou dizendo que mulher seja incapaz de dirigir carros – embora eu veja incompatibilidades naturais entre mulher e volante, pois ainda acho que mulher cai bem no banco ao lado –, apenas não sou obrigado a aceitar ver com naturalidade uma mulher dirigindo um táxi. Não me recusei a aceitar a condução porque estava muito atrasado e por sentir-me envergonhado de expressar minha indignação. Pedras que outrora jogavam em Madalenas, tendem a machucar ferozmente qualquer um que atente a esta novíssima e fracassada verdade.

Porque é simples o motivo de tanta angústia nas mulheres, é parte de seu gene ser uma mulher original (lavar, passar, cozinhar, arrumar a casa, assistir tv etc), é uma vontade reprimida que escandaliza de variadas formas a cada tentativa desiludida de ser mulher independente e ao mesmo tempo feliz. Fiquem sabendo: amar e pensar não tocam a mesma música. E como já disse em outras palavras antes, mais do que pensar, muito pior do que pensar, as mulheres hoje rebaixam sua existência a uma ostensiva defesa, defendem-se de toda arbitrariedade masculina, encaram de frente uma voz mais alta, desprezam muitas vezes sua moral em função de demonstrar sua infame independência mantendo relações supostamente amorosas e sexuais, a céu aberto, com uma variedade peculiar de homens.

Nem Reich, nem Gaiarsa, nem Márcia Goldschmidt. É dada a hora do retorno imprescindível, a volta da originalidade da alma feminina. Tentativas, repito, há. Algumas forçam a feminilidade com suas roupas grosseiras e apelativas, ou mesmo no perfume que usam, não mais aquele suave odor, mais além porque exterminam o estoque de perfumes masculinos das prateleiras, talvez para dar a impressão, a certeza, a nós, homens, de que trabalham.

Somos atropelados todos os dias pelas carrascas chefas de setor, pelas esquizofrênicas gerentes de banco, pelas ignorantes e mal-amadas parlamentares. Oro todas as noites para não ter que suportar no dia seguinte as pré-menstruadas, que hoje, porque trabalham, se auto-sustentam, não têm direito e nem se dão ao direito de descanso num período tão delicado. E não pode faltar a visceral arrogância das intelectuais, estas, porque pensam, questionam, me parece, as mais concretamente afetadas do século XXI, sempre escrevendo tratados de dores e frustrações infindáveis.

Por tudo isso, isolado, faço cá minha campanha em favor da mulher original, aquela que não tem porque se preocupar com contas a pagar, que não precisa cuidar de planilhas, gráficos, periódicos, leis, ou responder inquéritos, escrever teses, participar de assembléias ou reuniões semanais de auto-ajuda e muito menos mexer com altas tecnologias, dirigir táxi e, meu deus, pasmem, dirigir ônibus.

É preciso cuidar que as novas gerações não sofram a carga absoluta destas fortalecidas frustradas. Não se pode comprometer tantos seres em formação por causa de um mal resolvido aspecto da atual vida social. Cabe às mulheres se darem à dura lida de lavar os pratos, enxugá-los, lavar calças jeans à mão, deixarem de lado a “chapinha” e pegarem firme o ferro elétrico, saber dos acontecidos da novela da tarde, desejar filhos e dedicarem-se a eles e ao seu marido, numa devoção nunca antes feita nem vista porque se trata, obviamente, de uma emergência, pois, repito, esta incapacidade de amar, de entregar-se inteira – e não essa metade absurda e sem cheiro – a um pretendente amor só poderá ser superada quando Amélias (antítese de piriguete) e Emílias (síntese de mulher original) entrarem em cena num triunfal retorno, de corpo e alma, apoiadas às costas do encantado príncipe, montados os dois num inesquecível cavalo branco.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

O LÚDICO OFENSIVO


Há tempos vejo rapazes e moças suspirando na saída do cinema após um filme do Pedro Almodóvar. Geralmente essa gente que leva pra casa um semblante leve de quem acabara de levar uma surra de flores são artistas universitários, professores universitários, universitários universitários. Então pensei: “Tem algo errado aí.” Pobre da mosca porque o tiro foi certeiro. Pois, vejam só, me dei ao trabalho de ir à locadora e suguei tudo que havia do aclamado diretor roteirista tarado espanhol. Desde “Maus Hábitos” até os mais recentes “Volver” e "Má educação”.

Apesar de ter sofrido por um fim de semana inteiro – que parecia nunca chegar ao fim, e não sei bem se foram as horas que realmente duraram a passar, ou se eu já sofria com tanta cor vermelha na cara –, os filmes do Almodóvar deram-me apenas uma, mas significativa, contribuição, sem semblante leve nem tapa de rosas: a constatação de que filmes pornográficos são arte.

(Claro que não estou dizendo que o tal Almodóvar seja um diretor roteirista tarado espanhol pornográfico. A alcunha do rapaz, para mim, ainda é a de um diretor roteirista tarado espanhol cult.)


O problema é que se faz uma grande confusão, até mesmo, me parece, um proposital equívoco, quando se classifica o filme pornográfico como filme de baixa categoria, e isso se dá pelo conteúdo em si, pela inexistência exata de roteiros, pelo fato de se utilizar câmeras caseiras, a péssima atuação dos atores... uma gama de argumentos tentando desqualificar este gênero, e, o que considero muito pior, defini-lo como qualquer coisa, menos como um filme artístico.


Pois bem, quando perco uma tarde inteira assistindo Sessão da Tarde, não só eu, como a maioria das pessoas – universitárias ou não – sabem que aquele filme ali, seja comédia romântica, seja comédia pastelão estadunidense, todos sabem que é um filme, que é arte, que por pior que seja estão ali inseridos componentes suficientes para considerá-lo como uma manifestação artística. Só não consigo ver diferença entre um filme desses, de Sessão da Tarde mesmo, e um filme pornográfico. Em ambos os casos os tais componentes estão ali, havendo, é verdade, a diferença do olhar, enquanto julga-se o filme bobo ou a comédia romântica pela questão, em geral, temática e estética, o filme pornográfico sofre de um falso-moralismo abrangente e praticado em todo o contexto social: do padre ao professor universitário.


Porque já é costume ter o filme pornográfico como coisa para se falar cochichando, havendo até gente que nega já ter assistido ou que goste de assistir um filme pornográfico. Casos vejo de pessoas saindo das locadoras com um filme desses na mão como se levassem uma arma sem porte, tamanho é o medo de serem julgadas. Além disso, quando levam o filme para casa é preciso que todos estejam dormindo e ninguém nunca saberá que dentro daquele lar já entrou, um dia, um filme pornográfico. Ou até mesmo pessoas que vão aos cinemas de temática estritamente pornográfica o fazem com a maior das cautelas como se fizessem parte de uma seita satânica. Não há mesmo privacidade para esse tipo de privacidade, sobrepõem-se, decerto, os olhares gulosos de moralidades mentirosas, como se o que se passa num filme pornográfico fosse algo fora da realidade, da vida real.


Mas, percebam: é sim algo fora da vida real, mas sob um outro ponto de vista, não o da moral, sob o ponto de vista artístico mesmo, porque um filme pornográfico retrata da forma mais visceral possível a representação lúdica de uma relação sexual, por mais real – e não há outra forma de se fazer um filme pornográfico se não pelo ato sexual explícito – que uma cena se mostre, aquilo que o ator e a atriz fazem, a forma como fazem não tem relação alguma com a forma real como nós na vida real fazemos sexo. A ereção do ator é capaz de durar minutos intermináveis, a atriz, através de seus gemidos, nos dá a impressão de estar sentindo prazer em todas as partes do corpo e a relação em si, passando por preliminares e posições das mais variadas, chega a durar, inevitavelmente, os mesmos minutos intermináveis da ereção do ator.

Fora isso, os filmes que ainda ousam algum roteiro o fazem dentro do plano da fantasia, buscando o mesmo efeito que buscam os diretores cult em relação ao seu público: mexer com a sensibilidade do espectador, dar a ele alguma sensação, que, obviamente, vai depender da história que o diretor se propôs a contar. Então assim é o caso de filmes pornográficos em que o patrão se relaciona com a empregada, a vizinha que se joga nos braços do vizinho, o encanador que é assediado pela dona da casa, a garota que chama a amiga para ter relação sexual com seu namorado, filmes em que aparecem anões, idosos, sexo com animais, dupla penetração, dupla penetração vaginal, homens com pênis de tamanho desproporcional... a vida real, na grande maioria das vezes, não é assim. Ou seja, existe, está claro, uma série de elementos lúdicos neste gênero, levando aos seus espectadores a sensação de estar se passando ali a realidade sexual, quando é, na verdade, uma idealização de realidade, no caso específico uma idealização da realidade sexual. Se isso é esteticamente bom ou ruim, é preciso uma análise mais aguçada, o que é bem diferente de já partirmos para o desastroso julgamento moral, porque, vejam, um exemplo nítido são os filmes românticos que sofrem o julgamento estético e filosófico de serem filmes que retratam uma realidade que não existe e alimentam a idealização do amor perfeito, da busca de uma alma gêmea, e é este julgamento, por mais ranzinza e psicológico que seja, que não é minimamente utilizado quando se fala em filmes pornográficos.


Outro argumento comum que se usa para deslegitimar o conteúdo artístico de um filme pornográfico – e consequentemente legitima-se aí o falso moralismo – é de que os filmes pornográficos, por não terem enredo são todos iguais, seja na Guatemala ou na Holanda. Mas eu acho graça, porque o tal Almodóvar, tão aclamado – e tem lá seus méritos – e festejado faz filmes muitíssimo parecidos, a temática, os tipos de personagem, as histórias, e não ouço uma voz sequer maldizendo o diretor por ser repetitivo, muito pelo contrário, aquele que o fizer há de ser execrado do meio que freqüentar.


(A última que eu soube foi que o Alexandre Frota, por ter feito em curto espaço de tempo tantos filmes do gênero, perdeu o contrato que há tempos possuía com a ADIDAS, pelo simples fato de ser tachado como ator exclusivamente pornográfico. Um absurdo! Porque confunde-se a ficção com a vida real, assim como acontece nas novelas – por outros motivos, é claro – o ator ou a atriz de um filme desses fica restrito ao título de “pornográfico”, quando não por títulos de idoneidade ínfima.)


Os filmes pornográficos são no mundo todo uma grande indústria, que produz quilos de película por ano, emprega milhões de pessoas, além de darem uma relevante contribuição para as artes, desde a representação em si da realidade até mesmo dando ascensão ao que jamais esteve morto e tende a continuar vivo no ser humano: o seu caráter, imprescindivelmente, lúdico.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Carnaval é o mundo às avessas


De uns tempos pra cá quase não se zela por esta constatação fundamental citada por Mikhail Bakhtin: “O carnaval é o mundo às avessas.” E é no carnaval onde, explicitamente, as manifestações artísticas alimentam seu delírio maior, sem amarras, sem delimitações: o carnaval é o devaneio da arte.

E foi no Rio de Janeiro, que neste Carnaval, Paulo Barros, carnavalesco da Escola de Samba Viradouro, teve seu trabalho censurado, quando tentou desfilar no Sambódromo um carro alegórico que representaria o Holocausto, dentro do enredo “É de arrepiar”. A polêmica se deu principalmente quando a Federação Israelita do Rio de Janeiro soube que, no ponto mais alto do carro haveria um personagem fantasiado de Hitler. Consideraram escárnio, desrespeito. Entraram com ação na justiça e ganharam. Quem morreu na forca? A liberdade do artista.

Este não é o primeiro ato arbitrário no carnaval carioca. Joãozinho Trinta sofreu desta morte duas ou três vezes. E eis que então Paulo Barros, discípulo do premiado carnavalesco, é batizado, sofrendo sua primeira morte.

Muito ao contrário dos argumentos colocados sobre a intenção do artista, não havia escárnio algum. Havia sim uma atitude séria, levando para a Avenida um assunto relevante e, decerto, um alerta para este tipo de atrocidade que foi o Holocausto. Fazia-se, no carro, uma relação entre a imagem e a sensação que a mesma causou e ainda causa nas pessoas: uma emoção aterrorizante, um arrepio na alma. Ou seja, Paulo Barros estava minimamente tentando cumprir seu papel de artista, mostrando às pessoas, através de uma atitude poética, a vida nua e crua. E mesmo a presença de um “Hitler”, pisando os corpos naquele carro, não seria de forma alguma motivo de escândalo, seria a representação artística da realidade em si. Mas o devaneio de Barros não foi compreendido.

Houve quem berrasse dizendo que não teria cabimento um tema como este em pleno Carnaval. Ora, vejam, é obviamente uma visão minimalista em comparação à grandiosidade do que representa o Carnaval, é visão de quem acha que ali tudo não passa de uma festa apenas, sem espaço para melancolias ou assuntos sérios. Pois saibam, Carnaval é espaço sim para assuntos sérios e melancolias, mas bem ao modo do próprio Carnaval, com tamborins, marcação, cuíca, repiques e pandeiros. Além de ser uma visão equivocada, há um desconhecimento, uma total ignorância, pois são inumeráveis os enredos referentes à escravidão, por exemplo, dentro do Carnaval carioca em todos esses anos, e nem por isso, pelo fato de estar no Carnaval, deixa de ser assunto sério a escravidão, um constante alerta para um país miscigenado, mas que insiste velar um racismo abusivo.


(Muito além, estes enredos fizeram com que as Escolas de Samba saíssem à frente das metodologias de ensino do país, colocando na Avenida a mesma história vista no colégio, só que “debaixo para cima”, o ponto de vista de quem faz a História, não de quem a escreve. É a arte cumprindo sua função social).

Alguns anos atrás até mesmo Salvador – onde o Carnaval tende a ser mais democrático no sentido da participação – sofreu represálias. A banda Jammil lançara uma canção que se referia ao tão comum entorpecente “Lança-perfume” – que todo mundo sabe que é abertamente consumido no Carnaval de Salvador. A banda foi acusada de estar incitando as pessoas a usarem o “Lança-perfume”. Sofreu liminar. Foi parar na forca. Quase morreu. Foram proibidos de tocar a música durante o Carnaval, mas este “quase morreu” se deu porque nos trechos menos visados pelas emissoras de tevê, Jammil e outros tantos artistas tocaram a canção acompanhados por um coro efervescente de foliões felizes por estarem ali colocando em prática sua inviolável liberdade delirante.

É preciso perceber que no Carnaval não cabem julgamentos, não deve haver moral nem regras, porque neste período – que, visto dentro do calendário nacional e católico, é o período que antecede a quaresma que desemboca na Semana Santa – as comuns regras do dia a dia da cidade sofrem rompimentos, e a vida, neste curto espaço de tempo, torna profano o que é sagrado, libertando-se das repressões religiosas.

Quando o tema em pauta é Carnaval cabe sim cuidado no sentido de que deve-se deixar que a atitude carnavalesca, ao menos por esses 4 a 5 dias, permaneça intacta, inviolável. E colocar qualquer tipo de mordaça nas manifestações artísticas presentes no Carnaval é arrancar da arte sua livre ação no momento mais precioso em que esta se apresenta, neste instante de dias de devaneio, em que a vida não deixa de ser observada e refletida, apenas ganha um ponto de vista diferente da tão comum razão, impreterivelmente através de sambas ou frevos.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

IVETE SANGALO: BONITINHA E ORDINÁRIA.


“Ordinária” no falar baiano significa “mulher sedutora, que abusa da sensualidade”. Para alguns Ivete Sangalo pode até ser esse tipo de ordinária, tem gosto pra tudo mesmo. Para mim, ela não passa de uma mulher bonitinha. E ordinária, no sentido mais grosseiro da palavra. Porque como se já não bastasse o tanto de hipocrisia que tenho de suportar durante os dias de festa em Salvador, ela, achando pouco, inventou de fazer um “protesto” em pleno carnaval: com seu trio elétrico passou por cima de cds e dvds piratas. Que rebeldia! Que atitude politizada!

(Depois do protesto, ela recebeu de sua gravadora uma homenagem por vender 250 mil cópias (originais) de seu último CD “Ivete Sangalo Ao Vivo no Maracanã”, 600 mil DVDs (originais) e três milhões de downloads (legitimados). Despreza-se contabilizar a quantidade de cópias piratas vendidas, que, decerto, tem valores numéricos simbólicos relevantes).

É engraçado como às vezes resisto em acreditar que uma quantidade tão abusiva de demência possa estar numa pessoa só e começo a achar que o demente, nem tão demente assim, faz a coisa de propósito, somente para provocar. Mas no caso da ordinária em questão, assim como seu jeito de cantar e brincar com o público são atitudes espontâneas, suas ações equivocadas e dementes sofrem da mesma espontaneidade.

No alto de sua raiva e realeza, em pleno sábado de Carnaval, Ivete Sangalo declarou:
"Se eu vir um pirata, eu caio de porrada em cima dele. A gente precisa de respeito".

Ivete Sangalo despreza o povo. Tão voltada para si mesma, esquece que jamais teria a abragência que tem – e o patrimônio que tem – se não fosse o significativo empurrão da pirataria. Se não fosse aquele mesmo povo – que a viu toda enraivada e dona de si esmagando produtos não-originais – que pagou de R$ 5,00 a R$ 10,00 por um cd ou dvd seu e, consequentemente, compareceu aos seus shows.

Detentora da verdade, o discurso da ordinária pode não ser vazio, mas, para muitos que presenciaram seu chilique, entrou por um ouvido e saiu pelo outro, porque, pensem bem, a pirataria comercializada (a do camelô) e a pirataria legitimada (a dos programas de computador: emule e cia), ambas, hoje, têm um alcance enorme na vida das pessoas, e muitas daquelas que lá estavam no bloco da Ivete, sustentando seu conforto, pagando quilos de reais para festejar 3 ou 4 dias, certamente compraram o cd ou o dvd pirata ou, simplesmente, baixaram na internet. A vibração que se viu diante da calorosa revolta da ordinária se deu muito mais pela irreverência – uma característica marcante dessa artista – da frase do que por um apoio verdadeiro, como se depois desse dia, nenhuma dessas pessoas nunca mais comprariam qualquer produto pirata e fariam panfletagem contra a pirataria em seus trabalhos, em portas de fábricas, em suas igrejas, associações de bairro e condomínios.

É muito cômodo e fácil fazer esse discurso politicamente correto, porque afinal de contas estaria a Ivete, ali, em defesa do respeito aos artistas e trabalhadores de gravadoras e lojas de discos, se posicionando contra o crime, pois já está provado que a pirataria financia o tráfico de drogas e armas.

Não há um, há dois poréns nisso tudo: se formos comparar o contingente de pessoas que trabalham diretamente com a produção de cópias originais com o montante de pessoas que vivem da pirataria, Ivete Sangalo estaria muito mais para “Lulinha, paz e amor” do que para o Lula metalúrgico do final da década de 1970. Assim como, ouvi dizer, que um tal grupo de chineses, liderado por um indivíduo chamado Law Kin Chong, lucra milhões com a pirataria sem pagar um real de impostos. Pois bem, se for assim, sou obrigado a dizer que a senhorita Ivete Sangalo é, no mínimo, cúmplice de crimes cometidos pela sua gravadora, uma vez que um disco seu custa até R$ 25,00 e um DVD chega a R$ 40,00, quando, já está sabido há tempos, que o custo de produção dos mesmos é baratíssimo e o lucro das multinacionais a cada exemplar vendido é grandessíssimo.

E por falar em sonegação de impostos, uma dona Maria qualquer, que tem a calçada de sua rua mal feita, um João qualquer que mora num bairro em que o poste não funciona, dirijam-se a Ivete Sangalo e exijam dela – e de seus tantos companheiros donos de blocos carnavalescos – o dinheiro de impostos referentes ao Carnaval que deveriam ser pagos à prefeitura e que são escandalosamente sonegados desde a gestão do Sr. Antônio Imbassahy.

Aposto um real de Big Big e perco pra ver a tal ordinária fazendo esse mesmo discurso raivoso a favor do povo no Carnaval, a favor de acabarem com blocos e camarotes, passando o trio por cima de abadás, a favor da verdadeira democratização da festa, em respeito àqueles – e não são poucos –, que mesmo esmagados por blocos e camarotes e abadás, fazem questão de ver Ivete Sangalo na Avenida, vão aos seus shows, compram seus cds e dvds piratas, baixam suas músicas e, consequentemente, sustentam sua casa, suas roupas, comida e a ração dos seus cachorros.