sábado, 23 de fevereiro de 2008

O LÚDICO OFENSIVO


Há tempos vejo rapazes e moças suspirando na saída do cinema após um filme do Pedro Almodóvar. Geralmente essa gente que leva pra casa um semblante leve de quem acabara de levar uma surra de flores são artistas universitários, professores universitários, universitários universitários. Então pensei: “Tem algo errado aí.” Pobre da mosca porque o tiro foi certeiro. Pois, vejam só, me dei ao trabalho de ir à locadora e suguei tudo que havia do aclamado diretor roteirista tarado espanhol. Desde “Maus Hábitos” até os mais recentes “Volver” e "Má educação”.

Apesar de ter sofrido por um fim de semana inteiro – que parecia nunca chegar ao fim, e não sei bem se foram as horas que realmente duraram a passar, ou se eu já sofria com tanta cor vermelha na cara –, os filmes do Almodóvar deram-me apenas uma, mas significativa, contribuição, sem semblante leve nem tapa de rosas: a constatação de que filmes pornográficos são arte.

(Claro que não estou dizendo que o tal Almodóvar seja um diretor roteirista tarado espanhol pornográfico. A alcunha do rapaz, para mim, ainda é a de um diretor roteirista tarado espanhol cult.)


O problema é que se faz uma grande confusão, até mesmo, me parece, um proposital equívoco, quando se classifica o filme pornográfico como filme de baixa categoria, e isso se dá pelo conteúdo em si, pela inexistência exata de roteiros, pelo fato de se utilizar câmeras caseiras, a péssima atuação dos atores... uma gama de argumentos tentando desqualificar este gênero, e, o que considero muito pior, defini-lo como qualquer coisa, menos como um filme artístico.


Pois bem, quando perco uma tarde inteira assistindo Sessão da Tarde, não só eu, como a maioria das pessoas – universitárias ou não – sabem que aquele filme ali, seja comédia romântica, seja comédia pastelão estadunidense, todos sabem que é um filme, que é arte, que por pior que seja estão ali inseridos componentes suficientes para considerá-lo como uma manifestação artística. Só não consigo ver diferença entre um filme desses, de Sessão da Tarde mesmo, e um filme pornográfico. Em ambos os casos os tais componentes estão ali, havendo, é verdade, a diferença do olhar, enquanto julga-se o filme bobo ou a comédia romântica pela questão, em geral, temática e estética, o filme pornográfico sofre de um falso-moralismo abrangente e praticado em todo o contexto social: do padre ao professor universitário.


Porque já é costume ter o filme pornográfico como coisa para se falar cochichando, havendo até gente que nega já ter assistido ou que goste de assistir um filme pornográfico. Casos vejo de pessoas saindo das locadoras com um filme desses na mão como se levassem uma arma sem porte, tamanho é o medo de serem julgadas. Além disso, quando levam o filme para casa é preciso que todos estejam dormindo e ninguém nunca saberá que dentro daquele lar já entrou, um dia, um filme pornográfico. Ou até mesmo pessoas que vão aos cinemas de temática estritamente pornográfica o fazem com a maior das cautelas como se fizessem parte de uma seita satânica. Não há mesmo privacidade para esse tipo de privacidade, sobrepõem-se, decerto, os olhares gulosos de moralidades mentirosas, como se o que se passa num filme pornográfico fosse algo fora da realidade, da vida real.


Mas, percebam: é sim algo fora da vida real, mas sob um outro ponto de vista, não o da moral, sob o ponto de vista artístico mesmo, porque um filme pornográfico retrata da forma mais visceral possível a representação lúdica de uma relação sexual, por mais real – e não há outra forma de se fazer um filme pornográfico se não pelo ato sexual explícito – que uma cena se mostre, aquilo que o ator e a atriz fazem, a forma como fazem não tem relação alguma com a forma real como nós na vida real fazemos sexo. A ereção do ator é capaz de durar minutos intermináveis, a atriz, através de seus gemidos, nos dá a impressão de estar sentindo prazer em todas as partes do corpo e a relação em si, passando por preliminares e posições das mais variadas, chega a durar, inevitavelmente, os mesmos minutos intermináveis da ereção do ator.

Fora isso, os filmes que ainda ousam algum roteiro o fazem dentro do plano da fantasia, buscando o mesmo efeito que buscam os diretores cult em relação ao seu público: mexer com a sensibilidade do espectador, dar a ele alguma sensação, que, obviamente, vai depender da história que o diretor se propôs a contar. Então assim é o caso de filmes pornográficos em que o patrão se relaciona com a empregada, a vizinha que se joga nos braços do vizinho, o encanador que é assediado pela dona da casa, a garota que chama a amiga para ter relação sexual com seu namorado, filmes em que aparecem anões, idosos, sexo com animais, dupla penetração, dupla penetração vaginal, homens com pênis de tamanho desproporcional... a vida real, na grande maioria das vezes, não é assim. Ou seja, existe, está claro, uma série de elementos lúdicos neste gênero, levando aos seus espectadores a sensação de estar se passando ali a realidade sexual, quando é, na verdade, uma idealização de realidade, no caso específico uma idealização da realidade sexual. Se isso é esteticamente bom ou ruim, é preciso uma análise mais aguçada, o que é bem diferente de já partirmos para o desastroso julgamento moral, porque, vejam, um exemplo nítido são os filmes românticos que sofrem o julgamento estético e filosófico de serem filmes que retratam uma realidade que não existe e alimentam a idealização do amor perfeito, da busca de uma alma gêmea, e é este julgamento, por mais ranzinza e psicológico que seja, que não é minimamente utilizado quando se fala em filmes pornográficos.


Outro argumento comum que se usa para deslegitimar o conteúdo artístico de um filme pornográfico – e consequentemente legitima-se aí o falso moralismo – é de que os filmes pornográficos, por não terem enredo são todos iguais, seja na Guatemala ou na Holanda. Mas eu acho graça, porque o tal Almodóvar, tão aclamado – e tem lá seus méritos – e festejado faz filmes muitíssimo parecidos, a temática, os tipos de personagem, as histórias, e não ouço uma voz sequer maldizendo o diretor por ser repetitivo, muito pelo contrário, aquele que o fizer há de ser execrado do meio que freqüentar.


(A última que eu soube foi que o Alexandre Frota, por ter feito em curto espaço de tempo tantos filmes do gênero, perdeu o contrato que há tempos possuía com a ADIDAS, pelo simples fato de ser tachado como ator exclusivamente pornográfico. Um absurdo! Porque confunde-se a ficção com a vida real, assim como acontece nas novelas – por outros motivos, é claro – o ator ou a atriz de um filme desses fica restrito ao título de “pornográfico”, quando não por títulos de idoneidade ínfima.)


Os filmes pornográficos são no mundo todo uma grande indústria, que produz quilos de película por ano, emprega milhões de pessoas, além de darem uma relevante contribuição para as artes, desde a representação em si da realidade até mesmo dando ascensão ao que jamais esteve morto e tende a continuar vivo no ser humano: o seu caráter, imprescindivelmente, lúdico.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Carnaval é o mundo às avessas


De uns tempos pra cá quase não se zela por esta constatação fundamental citada por Mikhail Bakhtin: “O carnaval é o mundo às avessas.” E é no carnaval onde, explicitamente, as manifestações artísticas alimentam seu delírio maior, sem amarras, sem delimitações: o carnaval é o devaneio da arte.

E foi no Rio de Janeiro, que neste Carnaval, Paulo Barros, carnavalesco da Escola de Samba Viradouro, teve seu trabalho censurado, quando tentou desfilar no Sambódromo um carro alegórico que representaria o Holocausto, dentro do enredo “É de arrepiar”. A polêmica se deu principalmente quando a Federação Israelita do Rio de Janeiro soube que, no ponto mais alto do carro haveria um personagem fantasiado de Hitler. Consideraram escárnio, desrespeito. Entraram com ação na justiça e ganharam. Quem morreu na forca? A liberdade do artista.

Este não é o primeiro ato arbitrário no carnaval carioca. Joãozinho Trinta sofreu desta morte duas ou três vezes. E eis que então Paulo Barros, discípulo do premiado carnavalesco, é batizado, sofrendo sua primeira morte.

Muito ao contrário dos argumentos colocados sobre a intenção do artista, não havia escárnio algum. Havia sim uma atitude séria, levando para a Avenida um assunto relevante e, decerto, um alerta para este tipo de atrocidade que foi o Holocausto. Fazia-se, no carro, uma relação entre a imagem e a sensação que a mesma causou e ainda causa nas pessoas: uma emoção aterrorizante, um arrepio na alma. Ou seja, Paulo Barros estava minimamente tentando cumprir seu papel de artista, mostrando às pessoas, através de uma atitude poética, a vida nua e crua. E mesmo a presença de um “Hitler”, pisando os corpos naquele carro, não seria de forma alguma motivo de escândalo, seria a representação artística da realidade em si. Mas o devaneio de Barros não foi compreendido.

Houve quem berrasse dizendo que não teria cabimento um tema como este em pleno Carnaval. Ora, vejam, é obviamente uma visão minimalista em comparação à grandiosidade do que representa o Carnaval, é visão de quem acha que ali tudo não passa de uma festa apenas, sem espaço para melancolias ou assuntos sérios. Pois saibam, Carnaval é espaço sim para assuntos sérios e melancolias, mas bem ao modo do próprio Carnaval, com tamborins, marcação, cuíca, repiques e pandeiros. Além de ser uma visão equivocada, há um desconhecimento, uma total ignorância, pois são inumeráveis os enredos referentes à escravidão, por exemplo, dentro do Carnaval carioca em todos esses anos, e nem por isso, pelo fato de estar no Carnaval, deixa de ser assunto sério a escravidão, um constante alerta para um país miscigenado, mas que insiste velar um racismo abusivo.


(Muito além, estes enredos fizeram com que as Escolas de Samba saíssem à frente das metodologias de ensino do país, colocando na Avenida a mesma história vista no colégio, só que “debaixo para cima”, o ponto de vista de quem faz a História, não de quem a escreve. É a arte cumprindo sua função social).

Alguns anos atrás até mesmo Salvador – onde o Carnaval tende a ser mais democrático no sentido da participação – sofreu represálias. A banda Jammil lançara uma canção que se referia ao tão comum entorpecente “Lança-perfume” – que todo mundo sabe que é abertamente consumido no Carnaval de Salvador. A banda foi acusada de estar incitando as pessoas a usarem o “Lança-perfume”. Sofreu liminar. Foi parar na forca. Quase morreu. Foram proibidos de tocar a música durante o Carnaval, mas este “quase morreu” se deu porque nos trechos menos visados pelas emissoras de tevê, Jammil e outros tantos artistas tocaram a canção acompanhados por um coro efervescente de foliões felizes por estarem ali colocando em prática sua inviolável liberdade delirante.

É preciso perceber que no Carnaval não cabem julgamentos, não deve haver moral nem regras, porque neste período – que, visto dentro do calendário nacional e católico, é o período que antecede a quaresma que desemboca na Semana Santa – as comuns regras do dia a dia da cidade sofrem rompimentos, e a vida, neste curto espaço de tempo, torna profano o que é sagrado, libertando-se das repressões religiosas.

Quando o tema em pauta é Carnaval cabe sim cuidado no sentido de que deve-se deixar que a atitude carnavalesca, ao menos por esses 4 a 5 dias, permaneça intacta, inviolável. E colocar qualquer tipo de mordaça nas manifestações artísticas presentes no Carnaval é arrancar da arte sua livre ação no momento mais precioso em que esta se apresenta, neste instante de dias de devaneio, em que a vida não deixa de ser observada e refletida, apenas ganha um ponto de vista diferente da tão comum razão, impreterivelmente através de sambas ou frevos.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

IVETE SANGALO: BONITINHA E ORDINÁRIA.


“Ordinária” no falar baiano significa “mulher sedutora, que abusa da sensualidade”. Para alguns Ivete Sangalo pode até ser esse tipo de ordinária, tem gosto pra tudo mesmo. Para mim, ela não passa de uma mulher bonitinha. E ordinária, no sentido mais grosseiro da palavra. Porque como se já não bastasse o tanto de hipocrisia que tenho de suportar durante os dias de festa em Salvador, ela, achando pouco, inventou de fazer um “protesto” em pleno carnaval: com seu trio elétrico passou por cima de cds e dvds piratas. Que rebeldia! Que atitude politizada!

(Depois do protesto, ela recebeu de sua gravadora uma homenagem por vender 250 mil cópias (originais) de seu último CD “Ivete Sangalo Ao Vivo no Maracanã”, 600 mil DVDs (originais) e três milhões de downloads (legitimados). Despreza-se contabilizar a quantidade de cópias piratas vendidas, que, decerto, tem valores numéricos simbólicos relevantes).

É engraçado como às vezes resisto em acreditar que uma quantidade tão abusiva de demência possa estar numa pessoa só e começo a achar que o demente, nem tão demente assim, faz a coisa de propósito, somente para provocar. Mas no caso da ordinária em questão, assim como seu jeito de cantar e brincar com o público são atitudes espontâneas, suas ações equivocadas e dementes sofrem da mesma espontaneidade.

No alto de sua raiva e realeza, em pleno sábado de Carnaval, Ivete Sangalo declarou:
"Se eu vir um pirata, eu caio de porrada em cima dele. A gente precisa de respeito".

Ivete Sangalo despreza o povo. Tão voltada para si mesma, esquece que jamais teria a abragência que tem – e o patrimônio que tem – se não fosse o significativo empurrão da pirataria. Se não fosse aquele mesmo povo – que a viu toda enraivada e dona de si esmagando produtos não-originais – que pagou de R$ 5,00 a R$ 10,00 por um cd ou dvd seu e, consequentemente, compareceu aos seus shows.

Detentora da verdade, o discurso da ordinária pode não ser vazio, mas, para muitos que presenciaram seu chilique, entrou por um ouvido e saiu pelo outro, porque, pensem bem, a pirataria comercializada (a do camelô) e a pirataria legitimada (a dos programas de computador: emule e cia), ambas, hoje, têm um alcance enorme na vida das pessoas, e muitas daquelas que lá estavam no bloco da Ivete, sustentando seu conforto, pagando quilos de reais para festejar 3 ou 4 dias, certamente compraram o cd ou o dvd pirata ou, simplesmente, baixaram na internet. A vibração que se viu diante da calorosa revolta da ordinária se deu muito mais pela irreverência – uma característica marcante dessa artista – da frase do que por um apoio verdadeiro, como se depois desse dia, nenhuma dessas pessoas nunca mais comprariam qualquer produto pirata e fariam panfletagem contra a pirataria em seus trabalhos, em portas de fábricas, em suas igrejas, associações de bairro e condomínios.

É muito cômodo e fácil fazer esse discurso politicamente correto, porque afinal de contas estaria a Ivete, ali, em defesa do respeito aos artistas e trabalhadores de gravadoras e lojas de discos, se posicionando contra o crime, pois já está provado que a pirataria financia o tráfico de drogas e armas.

Não há um, há dois poréns nisso tudo: se formos comparar o contingente de pessoas que trabalham diretamente com a produção de cópias originais com o montante de pessoas que vivem da pirataria, Ivete Sangalo estaria muito mais para “Lulinha, paz e amor” do que para o Lula metalúrgico do final da década de 1970. Assim como, ouvi dizer, que um tal grupo de chineses, liderado por um indivíduo chamado Law Kin Chong, lucra milhões com a pirataria sem pagar um real de impostos. Pois bem, se for assim, sou obrigado a dizer que a senhorita Ivete Sangalo é, no mínimo, cúmplice de crimes cometidos pela sua gravadora, uma vez que um disco seu custa até R$ 25,00 e um DVD chega a R$ 40,00, quando, já está sabido há tempos, que o custo de produção dos mesmos é baratíssimo e o lucro das multinacionais a cada exemplar vendido é grandessíssimo.

E por falar em sonegação de impostos, uma dona Maria qualquer, que tem a calçada de sua rua mal feita, um João qualquer que mora num bairro em que o poste não funciona, dirijam-se a Ivete Sangalo e exijam dela – e de seus tantos companheiros donos de blocos carnavalescos – o dinheiro de impostos referentes ao Carnaval que deveriam ser pagos à prefeitura e que são escandalosamente sonegados desde a gestão do Sr. Antônio Imbassahy.

Aposto um real de Big Big e perco pra ver a tal ordinária fazendo esse mesmo discurso raivoso a favor do povo no Carnaval, a favor de acabarem com blocos e camarotes, passando o trio por cima de abadás, a favor da verdadeira democratização da festa, em respeito àqueles – e não são poucos –, que mesmo esmagados por blocos e camarotes e abadás, fazem questão de ver Ivete Sangalo na Avenida, vão aos seus shows, compram seus cds e dvds piratas, baixam suas músicas e, consequentemente, sustentam sua casa, suas roupas, comida e a ração dos seus cachorros.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

A província de Caymmi e a metrópole de Varela


Ponha-se no meu lugar, Dorival, e quando um dia voltar a por os pés em Salvador irá sentir que o chão não é mais de barro e o pescador virou empregado – com carteira assinada – do dono da embarcação. Clarividente, mesmo sem ter vivido a cidade do Cancioneiro, são as transformações por que passou nossa cidade, de província a metrópole – embora resquícios provincianos pairem num ou noutro canto, mas são largos os passos que estamos dando para a modernidade quando estabeleceremos de vez a alcunha de “cidade grande”.

Vejam bem, depois de mais de quarenta anos sob o poder de Antônio Carlos Magalhães, conhecido político populista que tratava a Bahia tal fosse sua fazenda, sob o julgo do chicote e de lendários crimes, Salvador primeiramente se livrou do coronel em 2004, e a Bahia, como impulso natural, em 2006 fez o “homem” cair derrotado, vendo sua terra nas mãos de um petista. Já aí, no âmbito político institucional, Salvador dá as primeiras demonstrações de progresso.

O caso do Metrô demonstra também nossa efetiva intenção, uma vez que em função do crescimento populacional estúpido estupendo naturalmente torna ineficiente o já comum meio de transporte público que são os ônibus. O atraso nas obras creio que se deva aos inúmeros fatores provincianos que restam ainda em alguns espíritos: falta de vontade política, preguiça e desvio escancarado de verbas. Mas só o fato de ver trilhos que outrora carregavam bondes perdendo espaço para o asfalto já é motivo de alívio e ligeira felicidade de que estamos bem próximos do tão almejado desenvolvimento.

A instalação de indústrias multinacionais e grandes empresas nacionais vem gerando em nossa cidade não só o desemprego mas também o subemprego, com baixos salários e alta exploração, e consequentemente enriquecendo acionistas e empresários, contribuindo de forma significativa e legítima com o sistema capitalista. Tamanha importância no cenário econômico internacional era algo impensável na província do Caymmi, que por sinal, junto com Jorge Amado, eram as únicas empresas – um com a música, o outro com a literatura – que vendiam algo para o mundo, revertendo em consideráveis benefícios à cidade, mas nada que afetasse, como hoje afeta, a bolsa de valores de Tóquio, por exemplo.

As empresas de tele-marketing, que são hoje, em Salvador, o grande e único foco para se conseguir um trabalho, apesar da mínima remuneração, nos trouxeram, enfim, o necessário canal com o restante do planeta, através de seus sistemas e programações padronizados, cabendo a este ramo, cá nesta outrora província, um relevante papel na economia nacional e no respeitado acúmulo de capital por empresas, principalmente, estrangeiras.

A conseqüência destas ações voltadas para o mundo globalizado vai acarretar em mudanças imprescindíveis na estrutura da polis: onde se via campos de barro, vê-se prédios; onde havia calçadas largas, há lojas; onde haviam ambulantes avulsos, existem hoje profissionais liberais (vestidos de coletes) cadastrados e treinados para viabilizar suas vendas em ônibus; onde se via o mar, vê-se um shopping center moderníssimo. Sem falar na criação exaustiva de estradas, vias e viadutos, pois com a crescente demanda de mão-de-obra, hoje, graças a Deus, diversificada, carros, motos, caminhões engolem a cidade, fazendo desta uma grande arquitetura de asfalto em nome, exclusivamente, da modernidade.

Tudo isso, toda essa conquista, não seria possível se não houvesse o aprumado toque de necessárias e requintadas ações estatais que garantam os fins. E os meios são a tão polêmica política do controle de população que em Salvador vem sendo colocada em prática através de seu mais eficiente alicerce estatal: a polícia. Sem exatidões espúrias, há quase uma década nossa cidade promove chacinas, declaradamente, maior parte delas, executadas por policiais, em bairros periféricos da cidade – isso sem contar os assassinatos cometidos por cidadãos comuns, sejam eles infratores, sejam simples pessoas, que, por algum motivo banal, matam.

Graças a esta política, adotada pelos Governos anteriores e ratificada de forma explícita pelo atual Governo, demos um importante passo à modernidade, pois hoje, com os mais de 8.000 homicídios praticados de 2004 para cá, estamos pau a pau nos números com Rio de Janeiro e São Paulo, cidades, que neste e nos citados itens, há alguns anos, pareciam muito distantes de nós. Porque, façamos um trato, não há cidade grande que possa assim ser chamada se não houver este controle (candelárias, carandirus). E ainda em cima disso, um dado curioso é que deste tanto de – digamos assim, para não ficar moralmente pesado – eliminação necessária ao desenvolvimento sócio-econômico, mais de 85% eram negros ou pardos pobres, deixando evidente que a política adotada é coerente e tem alvo certo, seja culpado ou não (como nos casos mais recentes do menino Djair e do jovem artista circense Ricardo Mattos).

Varela, que um dia vendeu picolé na rua, teve a sorte de ver essas transformações e delas ser um dos tantos colaboradores, entendendo-as e as legitimando ao seu modo, perdoada seja sua insensatez, às vezes abrangente, que é ainda resquício da província, mas ainda assim buscando, a partir deste ano, o topo do que Salvador, no meio da sua significativa mudança, precisa para varrer longe a mínima baianidade (leia-se província) deixada e abandonada por Caymmi e companhia: ter um dos seus legítimos porta-vozes populistas, o Raimundo Varela, no atual contexto, - diferente do de Fernando José -, absolutamente globalizado, transformado no prefeito da cidade.

E uma coisa puxa a mesma coisa: na Paraíba, dias atrás, um garoto de 9 anos de idade foi assassinado, a tiros de espingarda, pelo vizinho porque estava roubando manga no quintal do mesmo. Pois vejam só, a Paraíba, explícita província, quem diria, já dá seus primeiros passos rumo à modernidade.